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Muita polpa e nenhum caroço

Três variedades de uva de mesa sem sementes adaptadas ao clima tropical são lançadas no mercado

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

15/02/2006

Elas podem ser definidas em poucas palavras: suculentas e sem aqueles incômodos carocinhos no meio da polpa. São três variedades de uva de mesa sem sementes, uma tinta e duas brancas, que serão lançadas em Jales, município do noroeste paulista, no dia 19 deste mês, na Estação Experimental de Viticultura Tropical da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A presença desse tipo de fruta não é novidade nas quitandas e supermercados. Mas as novas variedades de uvas apirênicas – esse é o nome técnico do produto – são diferentes das raras cepas sem sementes plantadas no país, como a Thompson, a Festival e a Centennial.

Resultado de um trabalho de melhoramento genético por método tradicional iniciado há sete anos, as três cepas foram desenvolvidas para florescer nas condições climáticas brasileiras, mais quentes que a maioria dos vinhedos do mundo. “Seu manejo é mais simples e a produtividade maior do que as variedades originárias de regiões temperadas”, diz o pesquisador Umberto Almeida Camargo, da Embrapa Uva e Vinho, sediada na cidade gaúcha de Bento Gonçalves, que coordena os trabalhos com as uvas apirênicas.

No tubo de ensaio – A rigor, as novas variedades não são totalmente desprovidas de sementes. Elas possuem resquícios dessas estruturas germinativas. Nas uvas tintas, são como traços na forma de uma ou duas pequenas pintas róseas no interior da polpa. Nas cepas brancas, é mais difícil ver essas manchinhas. “Mas esses traços são macios como a polpa da fruta e não sentimos a sua presença na boca”, assegura Camargo. É interessante notar que os cultivares da Embrapa descendem de variedades que naturalmente já não apresentavam sementes. Depois de fecundadas, as plantas apirênicas geram embriões, como acontece em qualquer outro vegetal. Mas, passadas cerca de oito semanas da fertilização, ocorre um aborto espontâneo. Tal evento inviabiliza a formação de sementes, porque o embrião (que é a fusão do material genético paterno e materno) fica alojado dentro dessa estrutura germinativa.

Mas, então, se o embrião resultante do cruzamento de duas variedades sem sementes não consegue se desenvolver, como é possível criar novos cultivares a partir de plantas apirênicas? A solução é a chamada técnica de resgate e cultivoin vitro de embriões. Seis semanas após a fecundação da videira, pouco antes do aborto natural do embrião, as uvas, ainda verdes, são colhidas. Os embriões são retirados das bagas e colocados em tubos de ensaio com meio nutritivo adequado para que completem seu desenvolvimento e germinem no laboratório, para depois serem transferidos para o campo. Dessa forma, nasce a geração de uma possível nova variedade de uva derivada de pais apirênicos. Além de viabilizar o cruzamento entre plantas sem sementes, a técnica possibilita incorporar à nova variedade, já na primeira geração, outros predicados desejáveis, como sabor, textura e tamanho das bagas. O processo de gerar um novo cultivar de videira inclui ainda um paciente trabalho de aclimatação e reprodução vegetativa (propagação assexuada), por mudas, nas condições do campo brasileiro.

A Embrapa de Bento Gonçalves, que possui um banco de germoplasma (material reprodutivo) de 1.231 variedades de videiras para uso em projetos de melhoramento genético, desenvolveu oito seleções de uvas apirênicas. Essas seleções são cultivadas de forma experimental por produtores de seis regiões brasileiras: Pirapora, em Minas Gerais, Petrolina, em Pernambuco, no Vale do São Francisco, Marialva, no norte do Paraná, Limoeiro do Norte, no Ceará, além de Jales e Bento Gonçalves.

Por enquanto, três dessas seleções animaram a Embrapa a lançá-las como novos cultivares. O interessante é que cada uma apresenta características particulares. A cepa tinta, por exemplo, é bastante aromática, possui gosto agridoce e acidez alta. Uma das cepas brancas possui bagas de cor amarelo-dourado e tem como marca registrada a extrema doçura, bem ao gosto do consumidor brasileiro. “Quem é diabético não pode comer essa uva”, diz, em tom de brincadeira, o agrônomo Sérgio da Costa Dias, da Cooperativa Agrícola de Pirapora, que plantou, de forma experimental, 1,5 hectare de vinhedo com as novas cepas. A terceira variedade possui uma casca de tom bem esverdeado e é o oposto da casta branca anterior: seu sabor é neutro, com níveis baixos de açúcar e acidez média. É quase uma uva light ou diet e deve agradar ao consumidor europeu. Essa uva recebeu o nome comercial de BRS Linda. A branca doce é a BRS Clara e a preta, BRS Morena.

Adaptadas ao meio ambiente – Em termos de rendimento por área plantada, a produção das novas uvas é, no mínimo, 20% superior ao das castas de origem importada. Outro ponto positivo é o menor custo de seu manejo. “Preciso de quatro empregados por hectare quando trabalho com as variedades da Embrapa”, diz Tarcísio Bezerra, gerente da Fazenda Sant’Ana, de Petrolina. “Com a Festival (uma casta importada), são necessários seis funcionários.”

Desde seu início, o projeto de melhoramento genético de uvas apirênicas recebeu investimentos da ordem de US$ 2,8 milhões. Três quartos de seus recursos saíram do caixa da própria Embrapa, pouco menos de 20% vieram do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o restante, de cooperativas de produtores e empresas agrícolas. Apostar na pesquisa (e cultivo) de uvas de mesa sem sementes é um bom caminho para engordar as exportações do país. Na Europa, o preço do quilo da uva sem sementes chega a US$ 3,50.

Hoje, estima-se que apenas 3% das 600 mil toneladas anuais de uvas de mesa produzidas no país sejam de castas sem sementes. Desse total, apenas 26 mil toneladas foram exportadas em 2002, rendendo US$ 34 milhões.A produção de uvas sem semente durante quase todo o ano pode aumentar a presença da uva nacional na Europa e em outros mercados. Isso é possível porque no Vale do São Francisco, região semi-árida onde a fruticultura irrigada se desenvolve a passos largos, colhem-se até duas safras e meia de uva por ano. Tal peculiaridade garante o fornecimento quase ininterrupto da fruta. No sul do país, assim como nos tradicionais países exportadores de uvas de mesa, só ocorre uma colheita por ano, em geral nos meses de verão. “Outra vantagem é que as uvas sem sementes são ideais para fazer passas”, comenta Camargo. Hoje, as uvas passas, muito apreciadas nas festas de fim ano, vêm todas do exterior.

*Esta reportagem foi originalmente publicada na edição de dezembro de 2003 da revista Pesquisa FAPESP

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