JV

O Beaujolais Nouveau chegou ― e ninguém notou

Em crise há tempos, o vinho que já foi uma febre mundial hoje não excita mais os consumidores

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br

19/11/2009

Garrafas de BN: a farra do consumo desenfreado acabou e a festa não tem data para recomeçar

Como se estabeleceu há umas poucas  décadas, hoje,  terceira quinta-feira de novembro, o Beaujolais Nouveau começa a ser vendido em bares, restaurantes e lojas de vinho de todo o mundo.  A chegada da safra 2009 desse tintozinho leve e frutado, elaborado às pressas com a uva Gamay numa luta contra o tempo (entre a colheita e a venda da primeira garrafa decorrem apenas dois meses),  já não causa excitação em quase ninguém ― a não ser em alguns moradores da França,  onde se pode  comprar algumas boas garrafas de BN por preços entre 3 e 5 euros,  e no Japão, de longe o principal mercado externo para esse tipo de vinho.  Melhor que seja assim.

A ideia de lançar globalmente numa determinada data o BN ― um estilo de vinho jovem e popular, feito para ser bebido quase geladinho a uns 10°C e o mais rápido possível,  que originalmente foi um grande sucesso nos bistrôs parisienses do pós-guerra, nos anos 1950 e 1960 ― pareceu, durante um bom tempo, uma grande jogada comercial e de marketing dos  franceses.   Sim, de marketing, terreno pantanoso em que os gauleses inexplicavelmente patinam e se afundam com frequência. A frase Le Beaujolais Nouveau est arrivé, inventada no fim da década de 1960, atravessou fronteiras e se tornou conhecida entre os amantes de vinho de vários países. Durante a febre do BN, esse tipo de vinho chegou a responder por cerca de 60% e toda a produção do Beaujolais.  Tudo indicava que os franceses haviam descoberto uma mina de ouro.  O produtor elaborava o vinho e, em questão de uns poucos meses (em vez de anos), vendia boa parte de sua colheita engarrafada e se capitalizava rapidamente.  A onda do BN teve seu auge no exterior no fim dos anos 1980 e chegou também ao Brasil nos anos 1990.

O problema é que, de um estrondoso sucesso midíatico e de vendas, o BN se tornou um fardo a mais para a região do Beaujolais.  Cristalizou no longo prazo a imagem (injusta) de que todos os vinhos dessa zona vitícola, inclusive os melhores crus da região,  são tão vulgares, industrializados e desprezíveis como o aroma artificial de banana presente nos  piores Nouveaux.  Com o passar do tempo, a demanda pelos vinhos da região, BN inclusive, caiu. Hoje o Beaujolais está no meio de uma crise econômica, com produção em excesso e menos consumidores, a exemplo muitas zonas vitícolas do Velho Mundo.

Segundo reportagem publicada ontem no jornal econômico francês Les Echos, 3 mil hectares de vinhas foram arrancadas do Beaujolais nos últimos anos, domaines produtores fecharam ou foram vendidos e os preços dos vinhos da região estão em queda. A reportagem diz ainda que uma parcela das terras  da região está sendo reconvertida para o plantio de uvas de mesas ou para outras culturas e que hoje há 19 mil  hectares de vinhas no Beaujolais. Sinal dos tempos, a Chardonnay, a cepa branca mais popular no mundo e uma das estrelas da vizinha Borgonha, ganha espaço na região e já se pensa em limitar a sua presença ali a no máximo 10% do vinhedo local.

Não é de hoje que o Beaujolais, situado no sul da Borgonha, perto de Lyon, enfrenta grandes desafios.  Historicamente, essa zona sofre de uma crise de identidade e complexo de inferioridade em relação à região-mãe (melhor seria dizer madastra) em que está inserida, a mítica Borgonha. De tempos em tempos, ressurge o eterno debate: a zona do Beaujolais é uma sub-região (e bota sub nisso, diriam alguns)  da Borgonha ou é uma área vitícola independente? Afinal, além das diferenças de solo,  de clima e de vinificação, as duas áreas têm uma divergência ainda mais importante: o  Beaujolais planta Gamay, uma cepa tinta, de reputação modesta e dada a produzir vinhos leves e pouco longevos, e a Borgonha (além da branca Chardonnay) cultiva a Pinot Noir, uva que fascina muitos conhecedores e dá rótulos estelares, capazes de envelhecer por décadas, como o Romanée Conti. É verdade que o resto da Borgonha (quase) não planta Gamay por razões históricas, digamos, de força maior: no final do século XIV, o Filipe II, o duque de Borgonha, confinou ao Beaujolais o cultivo de vinhedos de Gamay,  cepa “vil e desleal”.

Apesar de terem sido sempre o patinho feio da Borgonha, os melhores vinhos do Beaujolais (um cru Molin -à-Vent, um Morgon ou um Chénas) ainda eram valorizados meio século atrás. “Nos anos 1950, um cru do Beaujolais era vendido ao preço de um grand cru da Borgonha”, escreveu o jornalista Bernard Burtschy numa reportagem publicada hoje no jornal francês Le Figaro. A frase pode ser um exagero, mas dá bem a medida de como as coisas mudaram desde que o mundo passou a associar o Beaujolais ao seu filho mais ligeiro, o BN.

Fora da França,  o modesto BN, que, bem feito, pode ser um vinho agradável para o verão,  enfrenta ainda um problema extra: o preço alto. Para nós, brasileiros,  vinho caro não é novidade.  Já faz parte, infelizmente,  da paisagem nacional. Há os impostos, o custo Brasil, o lucro do importador, os ganhos dos intermediários  … E, no caso do BN, há o valor  elevado de seu frete aéreo. O BN só está disponível nos quatro cantos do mundo na data marcada porque viaja de avião (seria de primeira classe?) da França para o seu destino final.   A Mistral, que deve ser a única importadora brasileira a ainda vender esse tipo de vinho regularmente ao Brasil, informa que os dois BN trazidos do produtor Joseph Drouhin – o Beaujolais Nouveau 2009 (R$ R$69,50) e o Beaujolais Villages Nouveau 2009 (R$ 89,00) – vieram no voo AF 454 da Air France que chegou em São Paulo em 2 de novembro. Mesmo em mercados com preços mais competitivos, o BN não chega a ser uma pechincha. A conhecida loja de vinhos  Zachys, de Nova York, está oferecendo o Beaujolais Nouveau 2009 de Drouhin por 12,99 dólares, pouco mais de  R$ 22 no câmbio de hoje. Para o padrão norte-americano, não chega a ser uma barganha muito excitante.

Os números do Beaujolais Nouveau – De acordo com a reportagem do Les Echos citada acima, foram produzidas cerca de 40 milhões de garrafas de BN em 2008, algo como 30 milhões de litros, pouco mais de um terço de toda a produção do Beaujolais. Desse total, 8,5 milhões de garrafas foram comercializadas na França e 15,5 milhões foram exportadas, da quais  6,7 milhões se destinaram ao Japão, maior comprador externo de BN.  Lendo as entrelinhas, dá para perceber que boa parte da produção de BN não é consumida. Em 2009, os números não devem ser muito diferentes.

Segundo alguns meios de comunicação, como La Revue du Vin de France, que, aliás, indicou 13 bons BN da safra 2009, o Beaujolais está tentando se reinventar, privilegiando vinhos menos artificiais e menos industrializados.  Para a noite de hoje, por exemplo, há uma degustação em Paris de BN orgânicos. Sinal dos novos tempos? Talvez.

Print Friendly, PDF & Email

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *