O radical da Alsácia
Jean-Michel Deiss fala de seu polêmico – e bem-sucedido – método de trabalho, que envolve biodinâmica, complantação e muita fé no terroir
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
01/08/2006
Num livro relativamente recente (e recomendável para quem gosta de vinhos franceses), The New France, o jornalista inglês Andrew Jefford, dono de um texto tão sagaz quanto o de sua compatriota Jancis Robinson, dizia que Jean-Michel Deiss era um falante tão compulsivo que corria o risco de eclipsar seus próprios vinhos. É realmente a impressão que fica depois de uma conversa com esse renomado e carismático produtor da Alsácia, aquele pedaço alemão da França onde se fazem bons brancos, secos ou com variados graus de doçura, com uvas como a Riesling ou a Gewurztraminer.
À frente do Domaine Marcel Deiss, situado em Bergheim, quinze quilômetros ao norte de Colmar, Jean-Michel pertence a uma família de vinhateiros que se instalaram na região em 1774. Intransigente defensor da noção de terroir — segundo a qual, as condições de clima e solo de um vinhedo podem imprimir uma marca particular aos vinhos daquele lugar –, ele fala sobre os seus (polêmicos, para alguns) métodos de trabalho: a biodinâmica, lado meio esotérico e radical da agricultura orgânica, que planta e colhe a uva respeitando as energias da natureza;a complantação, na qual várias cepas são cultivadas de forma misturada num mesmo vinhedo; sua aversão à tecnologia e ciência. E, claro, discorre apaixonadamente sobre o seu tema preferido: o conceito de terroir. “O terroir é mais importante que o estilo do vinhateiro ou as cepas que ele usa”, diz Jean-Michel, que esteve no Brasil em fins de maio e início de junho, quando participou do Encontro Mistral 2006. Abaixo os melhores trechos de sua entrevista:
O que é exatamente a biodinâmica?
Qual é o problema do vinhateiro? Para fazer um bom trabalho, ele precisa ter uma boa conexão com a vinha. Mais ou menos o mesmo acontece com uma mãe, que precisa ter uma boa conexão com o seu bebê. Qual a natureza dessa conexão? Ela não é técnica. Uma mãe não precisa ir à universidade para ser uma boa mãe. Tornar-se vinhateiro não é uma coisa que a gente aprende na universidade. Podemos aprender a tecnologia na faculdade. Mas não o amor, que é algo que vem do interior. Para mim, a biodinâmica, é um modo de dar um contorno ao amor. Uma maneira de experimentar uma linguagem para se comunicar melhor com a planta. Para saber quando ela está contente ou quando lhe falta alguma coisa. Para saber quando as coisas vão bem demais, para saber quando a planta está eufórica, ou quando as coisas estão muito difíceis. É isso. A biodinâmica é um jeito de aprender a conhecer os sentimentos da planta. Para nos tornarmos nós mesmo uma planta, precisamos de um estado de espírito, uma abertura, uma posição intelectual e filosófica. Isso quer dizer que a biodinâmica é algo essencialmente pessoal.
Cada vinhateiro pode ter a sua própria biodinâmica?
Sim. Cada um pode fazer seu próprio caminho. Não se trata de uma tecnologia, que cria uma interface que afasta as pessoas da plantas. O problema é ir em direção as plantas, sem qualquer segurança ou certeza. Temos de nos tornarmos nós mesmos uma vinha. Tudo isso é um caminho individual. Por isso, eu nunca falo em primeiro lugar da biodinâmica. Falo de terroir. Para mim, o mais importante é o terroir. A biodinâmica é, para mim, o modo de chegar à vinha. Para outros vinhateiros, talvez haja outras formas de fazer isso. É um processo individual, de liberdade.
O terroir é o mais importante de tudo?
É evidente que sim. Mais importante que o estilo do vinhateiro. Além disso, o terroir domina a história do vinho, a história das famílias do vinho. Numa família, você pode provar os vinhos do avô, do pai, do filho e do neto e ver que o terroir está ali, presente em todos dos vinhos, ainda que eles tenham sido feitos por quatro pessoas diferentes ao longo de 50 anos. O terroir prevalece. Nós somos apenas seus servidores. Cada um deve procurar no fundo de si mesmo e experimentar o seu próprio método para se tornar um bom vinhateiro.
Mas o senhor acredita que o terroir seja um elemento dado apenas da natureza ou, em muitos casos, também construído pelas mãos do homem?
Eu diria de outra maneira. Para mim, o terroir é o trabalho da vinha, forçada pelo homem, a descer suas raízes ao fundo do solo. A vinha é uma planta mediterrânea que gosta do calor e de ficar na parte de cima do solo. É o homem que a obriga a descer às profundezas do terroir, onde tudo é mais difícil. Não podemos separar o homem da vinha. Sem o homem, a vinha é uma planta selvagem, que não fabrica nenhuma civilização. Quando o homem a obriga a superar seus limites, é que ocorre a criação de um terroir. É um processo que demora séculos. Por isso, um terroir é um tesouro. É preciso o trabalho de gerações para que emerja das profundezas um terroir. Não se pode chegar num lugar e dizer que se tem um super terroir. Não se compra um terroir. É preciso trabalhar duro, procurar a verdade nas profundezas do solo e, assim, merecer um terroir. É a civilização, a natureza humaniza pela vinha.
Por que o senhor optou pela complantação?
Porque a base de nossa tradição européia do vinho é a dominação do terroir sobre às cepas. O terroir é o ambiente onde as cepas se tornam invisíveis. Um Meursault-Charmes (denominação da Borgonha) não se parece realmente com um Chardonnay. Um Chardonnay é algo meio sem nervo. Num Meursault-Charmes, ele se torna citronado, elegante. Veja o caso do Château Petrus, que é feito com Merlot. Às cegas, 98% das pessoas vão dizer que é um Cabernet Sauvigon. O terroir é o lugar onde as cepas são contornadas, destruídas e reconstruídas de outra forma. Compreendi que a legislação, a filosofia, francesa era justa. Se há um grande terroir, é proibido escrever o nome da cepa no rótulo. Tenho a sorte de ter grandes terroirs nos quais uma só casta não é suficiente, fica faltando uma dimensão de complexidade. Pesquisei quais cepas eu deveria ter para atingir esse objetivo e vi que era preciso usar cepas muito distintas. No fundo, o terroir se exprime quando cepas muito distintas se transformam em uma única casta, elas se harmonizam. Encontrei meu caminho pesquisando tranqüilamente todos os dias. Nada disso está explicado em algum lugar. Não há livros dizendo isso. Na universidade, aprendemos o gosto perfeito do Riesling, do Merlot, do Carbernet Sauvignon. Mas, na natureza, não há nunca um gosto perfeito. Foi o homem que convencionou dizer que um certo gosto é o gosto perfeito do Cabernet Sauvignon. É uma forma de assegurar a perfeição. Mas, na verdade, a perfeição é totalitária. Ela conduz todos à mesma coisa, e a natureza se revolta contra essa idéia. Ela é diversa, contraditória. Não há democracia na natureza. Compreendi isso e avancei nesse caminho. No fundo, o coração de um projeto de terroir repousa, como os muros de uma casa, sobre a palavra juntos. Temos um vinho de terroir quando a vinha, o vinhateiro, a terra e o céu estão juntos. Ele se torna um lugar onde todos, inclusive o cliente, falam a mesma língua. Cada um desses elementos se torna melhor num vinho de terroir. Os brasileiros são diferentes entre si, mas têm algo em comum que os torna brasileiros. O mesmo acontece na Alsácia.
Há quanto tempo o senhor pensa dessa maneira?
Faz 30 anos que persigo esse caminho. Sempre me irritou o gosto técnico, absoluto.
Qual é o papel da tecnologia ou da ciência na feitura de um vinho hoje em dia?
A ciência ambiciona melhorar as coisas, o que é louvável, mas, na maioria das vezes, ela as destrói. Isso porque ela o impede de sentir seu vinho, ela o afasta dele, ela se coloca entre você e o vinho. É por isso que há muito vinho sem energia, que não recebeu amor, que não teve ninguém que sentou alegria ou medo por ele. São vinhos simplesmente perfeitos. Certa vez, degustei vinhos na Itália, na casa de uma mulher muito charmosa, e, ao final da prova, ela me perguntou o que eu tinha achado dos vinhos. Disse que eram perfeitos. Ela me perguntou o que eu queria dizer com isso. Disse que eram perfeitos, mas que, daqui a meia hora, não saberia descrevê-los porque não tinham nenhuma personalidade. Talvez o que eu busque nos vinhos sejam defeitos, descobrir o que faz um homem ser diferente de seu vizinho. É isso que me interessa.
Qual é o papel da safra de vinho sob essa ótica?
Na lógica do terroir, a safra não serve para nada. O terroir existe onde o millésime (ano) ou o clima é um obstáculo. Os antigos praticaram a noção de terroir para lutar contra as safras, visto que a vinha é um planta que gosta do sol, do luxo, dá muitos bagos num ambiente assim. Justamente onde faz frio, onde as condições não são boas para a planta, onde muita gente pensa que é impossível amadurecer uvas, é que se faz grandes vinhos. Em alguns lugares, fazer um grande vinho, ter um terroir, é lutar contra o clima. Portanto, a safra é sempre um inimigo. Ela é muito seca, muito úmida, muito quente ou muito fria. Ela nunca é perfeita e o terroir serve para apagar essa diferença, essa imperfeição. Na história do vinho, há duas soluções: ou você procura o terroir, visto que você não tem um clima perfeito, ou você procura um lugar onde o clima é perfeito. O Velho Mundo, que não pode escolher seu clima, adotou a noção de terroir. O Novo Mundo procura locais perfeitos para a vinha, ou que possam ser corrigido pela tecnologia, como por exemplo pela irrigação, para fazer um vinho perfeito para o mundo todo.
*Esta matéria é uma versão aumentada e modificada de uma reportagem originalmente publicada na edição de junho de 2006 do jornal Bon Vivant
- Bye, bye California?
- Importado, mas feito com jeitinho nacional