Tintos e brancos de uma nova latitude
Elaborados no calor do paralelo 8 sul, os rótulos do Vale do São Francisco respondem por 15% da produção brasileira de vinhos finos
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
03/08/2007
“Vale do Napa? Bordeaux? Não, mas, ainda assim, terra do vinho.” O título da reportagem de 15 de maio passado do The New York Times, talvez o jornal mais influente do globo, era uma alusão a uma novidade da geografia contemporânea do vinho, ainda desconhecida por muito consumidores: no século 21, a vitivinicultura avança sobre um terreno até há alguns anos impensável para o cultivo da videira, as zonas tropicais, fora dos paralelos historicamente consagrados à vitivinicultura. A notícia é ainda mais surpreendente quando se constata que a região mais emblemática desses tintos e brancos das novas latitudes, como alguns críticos internacionais estão chamando os vinhos dessas terras quentes, é a porção semi-árida do Vale do São Francisco situada na divisa de Pernambuco com a Bahia. Ali, como diz a propaganda oficial, faz sol 300 dias por ano e quase não chove. Apesar de os primeiros fermentados de uvas finas oriundos da região de Petrolina (PE), epicentro da vitivinicultura irrigada do Nordeste, terem sido feitos há mais de duas décadas, apenas nos últimos quatro ou cinco anos, especialmente depois da entrada no semi-árido de grandes empresas, como a gaúcha Miolo e a ViniBrasil (associação da portuguesa Dão Sul com a Expand, maior importadora de vinhos no Brasil), o Vale do São Francisco passou realmente a ser percebido como um novo e diferente pólo produtor de vinhos.
De um cenário em que as parreiras podem ter como vizinhos coqueiros, palmeiras e outras frutas, onde, graças à água irrigada do rio São Francisco, os enólogos conseguem controlar o ciclo vegetativo da videira e podem colher até 2 safras e meia por ano, saíram no ano passado cerca de 6 milhões de litros de vinho fino, em torno de 15% de toda a produção nacional feita com uvas viníferas. A área de Petrolina ostenta a condição de segundo centro produtor de vinhos finos do país, atrás apenas do Rio Grande do Sul. Segundo José Gualberto de Almeida, presidente do Instituto do Vinho do Vale do São Francisco e da Valexport (associação local que reúne 300 produtores e exportadores de hortifrutigranjeiros e derivados), a região conta atualmente com sete vinícolas em funcionamento: Vinícola do Vale do São Francisco (dona da marca Botticelli), Vitivinícola Lagoa Grande (marcas Garziera e Carrancas), Adega Bianchetti Tedesco (que aparece no polêmico documentário Mondovino), Fazenda Ouro Verde (da Miolo, em associação com a Lovara e, mais recentemente, os espanhóis do grupo Osborne), Vitivinícola Santa Maria (da ViniBrasil), Château Ducos e Bella Fruta do Vale (do grupo Passarin, de São Paulo, com foco majoritário ainda na uva de mesa). A área destinada a uvas finas para vinho chega a, no mínimo, 700 hectares. Ainda é pequena perto dos 12 mil hectares de uva de mesa ali cultivados para consumo in natura (um sucesso da exportação brasileira), só que está em franca expansão. “A vocação anterior da região era a uva de mesa, mas hoje o vinho do São Francisco está consolidado”, acredita Almeida, que também é diretor da Vinícola do Vale do São Francisco, sediada em Santa Maria da Boa Vista (PE). “O maior desafio agora é divulgar os vinhos e ampliar a produção.”
Todos os principais empreendimentos vitivinícolas estão situados na margem esquerda do rio São Francisco, de acordo com Almeida. Com exceção da Fazenda Ouro Verde, localizada em Casa Nova, Bahia, as demais vinícolas estão em solo pernambucano, nos municípios de Lagoa Grande ou Santa Maria da Boa Vista. Primeira a apostar na nova vocação das terras quentes e irrigadas do semi-árido nordestino, a Vinícola do Vale do São Francisco começou com 15 hectares de uvas viníferas em 1984, quando sua produção não passava de 150 mil litros de vinho por ano. Hoje, depois de ter carregado por um bom tempo, sozinha, a bandeira do vinho nordestino, com períodos de alta e baixa no mercado nacional, a empresa dispõe de 120 hectares de parreiras plantadas e atinge a produção anual de 1,2 milhões de litros da bebida. “Queremos chegar em 130 hectares plantados em breve”, diz Almeida. A linha Botticelli, a principal da vinícola, que fatura anualmente cerca de R$ 6 milhões, conta com 9 rótulos: dois espumantes (um brut e um tipo Asti), quatro tintos e três brancos.
Os livros costumam destacar duas grandes faixas do globo terrestre, dotadas em geral de clima mediterrâneo ou temperado, como as mais aptas para o cultivo da uva. No hemisfério norte, essa zona, com dias quentes e noites frescas que favorecem o amadurecimento da vinha, se situa aproximadamente entre os paralelos 30 e 50 e compreende boa parte da tradicional vitivinicultura dos países do Velho Mundo. No hemisfério sul, a porção de terra mais ocupada pelas uvas fica entre os 28 e 42 graus de latitude. Fora dessas duas faixas, diz o conhecimento tradicional, o clima seria muito quente ou demasiado frio para o uva. Mas, nos últimos anos, embalados por progressos tecnológicos na vinícolas e no manejo da videira, os chamados vinhos tropicais das novas latitudes começaram a despontar em várias partes do globo, desafiando conceitos estabelecidos. A moderna vitivinicultura tropical fez surgir pólos em áreas desconhecidas como no distrito de Pune, no oeste central da Índia, a 18 graus de latitude norte, e nas montanhas de Hua Hin, no sul da Tailândia, a 11 graus de latitude norte. No entanto, nenhum desses lugares já alcançou o estágio atual dos vinhos do São Francisco ou apresenta as mesmas peculiaridades da região de Petrolina.
O que torna a vitivinicultura às margens do Velho Chico tão singular? Dotada de solos pobres, vegetação típica da caatinga e topografia plana, a região de Petrolina, que se situa a 350 metros do nível do mar, é bastante seca e quente, com baixa incidência de doenças. Em média, chove cerca de 550 milímetros por ano (um terço da água que cai do céu na Serra Gaúcha), concentrados entre os meses de novembro e março. A temperatura média na região é alta, superior a 26°C, com picos de até 40°C nos períodos mais quentes. No paralelo 8 sul, devido à grande quantidade de horas de sol, o ciclo vegetativo da parreira é muito mais acelerado que na maior parte das zonas de produção de uva para vinho. “No Vale do São Francisco, o metabolismo da planta é muito intenso”, afirma o enólogo Giuliano Elias Pereira, formalmente funcionário da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves (RS), mas que há um ano e meio trabalha na Embrapa Semi-Árido, em Petrolina. “Costumamos dizer, em tom de brincadeira, que aqui a videira faz fotossíntese até de noite”. Em cem dias, se o vinhateiro quiser, é possível amadurecer um pé de Cabernet Sauvignon, algo impensável em outras zonas do globo (e nem sempre bom para a qualidade do vinho).
Em termos práticos, o clima quente e seco da região faz com que o Vale do São Francisco seja um dos poucos lugares do mundo em que o enólogo pode escolher em que mês quer colher um vinhedo. Como durante todo o ano praticamente não há inverno, período em que a planta normalmente hiberna, a fase de descanso da videira é promovida por meio do corte do sistema de irrigação. Sem o estímulo da água, a vinha entra em recesso, condição em que pode permanecer por um ou vários meses se esse for o desejo do produtor. O domínio sobre o ciclo vegetativo da videira permite a divisão das propriedades em distintas parcelas, cada uma delas com plantas em diferentes estágios de desenvolvimento e “programada” para ser colhida numa época. “Só não fazemos vinho em janeiro e fevereiro no Vale do São Francisco”, diz Adriano Miolo, diretor técnico da Miolo, que produz anualmente entre 1,5 milhão e 2 milhões de litros de vinho em Casa Nova, Bahia. “Nos outros dez meses, fazemos. É o just-in-time da indústria vinícola.” A Miolo tem 200 hectares de vinhedos plantados na Fazenda Ouro Verde e está ampliando os parreirais.
A enóloga portuguesa Marta Ágoas, da ViniBrasil, que comercializa as marcas Adega do Vale, Rendeiras, Rio Sol e Paralelo 8, faz coro ao concorrente Adriano Miolo. “O Vale do São Francisco é um lugar único no mundo”, diz Marta. “Aqui trabalhamos o ano inteiro.” A joint-venture da Expand com a Dão Sul, que produz anualmente cerca de 1,5 milhão de litros de vinho, possui 2 mil hectares de terra na fazenda em Lagoa Grande, a 60 quilômetros de Petrolina, dos quais 350 hectares já estão com vinhedos plantados. A área produtiva da propriedade está dividida em parcelas de 20 hectares. “Cada lote está numa fase distinta do ciclo da videira”, explica a enóloga. Dessa forma, colhe-se quase todos os meses e não é necessário manter uma vinícola enorme para dar conta de toda a produção do vinhedo, visto que a entrada de uva para elaboração de vinho é escalonada ao longo do ano. Marta ainda aponta outra vantagem do sistema. “Se chover na colheita, nunca se perde toda a produção da fazenda, mas apenas um lote da safra”, diz ela. O trabalho da ViniBrasil, que iniciou suas atividades na região em 2003 e hoje exporta 45% de sua produção para 20 países, rendeu à vinícola no final do ano passado o principal prêmio de inovação tecnológica concedido pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), agência de fomento ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.
Ainda é cedo para saber qual é a exatamente a vocação vitivinícola do Vale do São Francisco. Na região, são elaborados vinhos de todas as cores (tintos, brancos e até rosados) e de quase todos os estilos. Há muitos vinhos secos e tranqüilos, sem as borbulhas de gás carbônico da fermentação, e também uma boa quantidade de espumantes, a maioria doces do tipo Asti, embora também existam versões demi-sec e bruts. Até vinho de licoroso de sobremesa se faz na região, como o Terranova Late Harvest, da Miolo, produzido com uvas de colheita tardia. Outra novidade do semi-árido é a produção de um brandy com uvas viníferas, um destilado feito pela Miolo em associação como os espanhóis da Osborne. Apesar dessa diversidade de produtos, algumas pessoas acreditam que o forte da região é mesmo a produção de vinhos leves, com pouca ou sem madeira, para serem consumidos jovens. Brancos leves e aromáticos, tintos ligeiros, sem muito tanino, e espumantes doces, como os do tipo Asti, seriam as especialidades do São Francisco. “Dá para fazer vinhos de guarda, mas a vocação da região são os vinhos jovens”, afirma Almeida. É claro que nem todos têm essa visão. Tanto que a ViniBrasil já lançou alguns produtos que se propõem a serem mais estruturados, com passagem em barricas de carvalho e algum potencial de envelhecimento, como os rótulos da linha reserva da Rio Sol e o Paralelo 8.
Quatro variedades de uvas já estão bem adaptadas à região, as tintas Syrah/Shiraz e a Cabernet Sauvignon e as brancas da família dos moscatéis e a Chenin Blanc. Por ora, essas cepas formam a base da maior parte dos rótulos da região, embora também existam vinhos do São Francisco elaborados com outras variedades. A Boticelli, por exemplo, tem varietais de Tannat e de Ruby Cabernet em sua linha. A marca Garziera vende um branco que é um blend das uvas Moscatel, Chardonnay e Sauvignon Blanc. Neste ano, a ViniBrasil lançou uma linha de quatro varietais, a Rio Sol Winemarkers’ Selection, que são feitos com outras cepas (Tempranillo, Merlot, Touriga Nacional e Alicante Bouschet). Apesar de ainda não ter colocado no mercado vinhos elaborados com outras uvas além das já consagradas na região, a Miolo aposta no potencial de várias cepas em seu projeto no Nordeste, como as brancas Sauvignon Blanc e Verdejo e as tintas Tempranillo, Mourvedre e Gernache. “Na Embrapa, também estamos testando 28 variedades de origem européia e algumas delas parecem promissoras”, comenta Pereira.
Se é verdade que a água irrigada do São Francisco e o sol constante facilitam o manejo da videira, também é correto dizer que o clima quente da região apresenta desvantagens para a produção de vinhos de qualidade realmente superior. Pode haver problemas de estabilidade na cor tanto dos vinhos brancos quanto dos tintos devido à oxidação precoce. Nos tintos, a oxidação prematura pode criar um tom amarronzado na bebida. “Às vezes, em apenas oito meses a coloração dos brancos se torna amarelo escuro”, diz Pereira, da Embrapa. “Esse processo deveria demorar uns dois ou três anos para acontecer.” Instabilidades protéicas, que alteram o aspecto, mas não o gosto do vinho, são outro tipo de imprevisto que ocasionalmente aparece nos brancos. Para os tintos de guarda, que começam a surgir na região, o maior empecilho é se livrar dos taninos verdes, que amarram a boca, e de aromas não tão refinados, como os de pimentão verde, que o rápido processo de amadurecimento das vinhas no São Francisco pode acarretar. “Precisamos fazer com que a vinha amadureça um pouco mais lentamente e evitar colher em dezembro, quando chove muito”, explica Pereira.
Falando assim, até parece que o pesquisador da Embrapa está desanimado com o potencial do Nordeste para produzir vinhos. Mas não é nada disso. “Em dez anos, o Vale do São Francisco vai estourar e vai fazer vinhos tão bons ou melhores que os do sul”, opina Pereira. “Aliás, já está estourando.” A exemplo do acelerado ciclo vegetativo da videira na região de Petrolina, o aprendizado sobre a melhor forma de plantar uva e fazer vinho no semi-árido brasileiro também deverá ser rápido. Pelo menos essa é a expectativa dos pesquisadores e dos produtores. Afinal, com tantas safras num ano, as possibilidades de experimentação são imensas. E os resultados, bons ou ruins, surgem logo. “O Vale do São Francisco será a região vinícola mais competitiva do Brasil em termos de preço e qualidade. Foi por isso que os espanhóis da Osborne decidiram se associar a nós para produzir brandy na região”, afirma Miolo. “Seremos mais competitivos que Mendoza. Apenas precisamos de mais tempo e investimentos.” Se a previsão se materializar, o Brasil terá escrito um inusitado capítulo na história do vinho. Com a ajuda da água irrigada do Velho Chico e os 300 dias de sol do semi-árido do Nordeste.
Estrelas do semi-árido
Alguns vinhos que se destacam no Vale do São Francisco
Paralelo 8
Vendido a R$ 68 a garrafa, esse blend em igual proporção de cinco uvas (Syrah, Cabernet Sauvignon, Alicante Bouschet, Touriga Nacional e Aragonez ) é o vinho top da ViniBrasil e provavelmente o produto mais caro do Vale do São Francisco. Passou 8 meses em barricas novas de carvalho francês e se propõe a ser um tinto de guarda. Sua primeira safra, de 2005, foi lançada no ano passado e rendeu apenas 3 mil garrafas.
Rio Sol Reserva Assemblage
Corte (mistura) das uvas Cabernet Sauvignon, Syrah e Alicante Bouschet que estagiou por seis meses em barricas de carvalho francês. Um tinto que vem obtendo boa aceitação no mercado nacional e internacional. Custa R$ 29,90
Terranova Moscatel
Espumante doce da Miolo elaborado pelo processo italiano Asti. Tem baixa graduação alcoólica, em torno de 7,5º GL. Feito com uvas das família dos moscatéis, é frutado e aromático e deve ser consumido jovem. Sua produção é quase ininterrupta na unidade de Casa Nova, Bahia, da Miolo. Preço em torno do R$ 18.
Terranova Shiraz
É o rótulo mais básico da Miolo oriundo do Nordeste. Feito com a uva tinta mais adaptada à região, a Shiraz (ou Syrah) é um produto leve, sem passagem por madeira. Custa pouco mais de R$ 10 nos supermercados.
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de junho de 2007 do jornal Bon Vivant
- De volta ao passado
- A nova geografia do consumo
Só não concordo de uma coisa da matéria veiculada, os solos não são pobres, são férteis.