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Um professor do vinho

Nicolás Catena fala sobre a ascensão da Argentina no cenário internacional, a uva Malbec e a viticultura de altitude

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

Publicado em 20/08/2007

Nicolás Catena: ex-professor de economia que assumiu a bodega familiar e colocou a Argentina no mapa do vinho fino de alta qualidade (Foto: Gladstone Campos/Divulgação)

A história recente do vinho na Argentina pode ser dividida em dois momentos: a.C. e d.C.. Ou seja, antes de Catena e depois de Catena. Exagero? Talvez. Mas em poucos lugares em que hoje se faz vinho um nome simboliza tanto a virada de uma região como o de Nicolás Catena. Ex-professor de economia nos Estados Unidos e comandante desde os anos 1980 da centenária Bodega Catena Zapata, de Mendoza, esse elegante senhor de fala pausada e didática foi quem primeiro mostrou ao mundo o potencial da moderna Argentina em produzir vinhos de alta qualidade. Graça a ele, o Malbec, potente e sedoso, tornou-se a variedade emblemática de seu país e a viticultura de altitude ganhou terreno em Mendoza. Durante o último Tour Mistral, evento realizado entre o fim de maio e o início de junho em várias capitais brasileiras pela importadora que traz ao Brasil seus vinhos, Catena falou ao Bon Vivant sobre a trajetória de sua bodega. Uma vinícola que faz desde vinhos relativamente baratos e confiáveis, como os da linha Alamos, até rótulos caros e sofisticados, como os Catena Alta e Nicolás Catena Zapata. Antes de passar a palavra ao entrevistado, uma curiosidade: durante a semana, Catena costuma abrir mão de tomar vinhos à noite para poder cultivar outra de suas paixões, estudar matemática. Coisas de um professor.

Gostaria que o senhor fizesse uma pequena reflexão. Hoje os vinhos Catena são vistos por muita gente como o máximo da qualidade argentina. Quando o senhor assumiu a vinícola da família, esperava alcançar um dia esse estágio?

Não foi fácil o percurso. Minha bodega é centenária. Sou a terceira geração a tomar conta dela – e agora meus filhos, a quarta geração, também estão trabalhando na bodega. Quando comecei a trabalhar na bodega, o estilo de vinhos que se produzia na Argentina – de que gostava o consumidor local – era o que vinha da tradição italiana e espanhola. Achava-se que vinho de mais qualidade tinha de ser muito oxidado. Era um conceito que nos levava a fazer tintos similares ao vinho do Porto e brancos parecidos com o Jerez. Essa era a tradição antiga, que os imigrantes europeus levaram à Argentina, e também a que se mantinha na minha bodega familiar. Mas, quando comecei a estudar esse tema, tive a sorte de visitar, no começo dos anos 1980, a região do Vale do Napa, na Califórnia. Lá descobri a revolução do Novo Mundo.

Robert Mondavi …

Sim, descubro Mondavi. Tinha ido à Califórnia por outro motivo. Fora lecionar economia na Universidade da Califórnia em Berkeley. Mas lá vi que, pela primeira vez na história do vinho, uma região de fora da França desafiava os franceses. Os californianos diziam: “vamos fazer um Cabernet Sauvignon igual ou melhor do que Bordeaux e um Chardonnay igual ou melhor do que a Borgonha”. Quando me deparei com esse movimento, pensei em fazer algo assim na Argentina. Voltei ao meu país e iniciei um projeto similar em 1983 com o objetivo de desafiar os grandes vinhos do mundo, que eram os franceses. Fui o primeiro a fazer isso na Argentina. Isso me custou muito. Fiz algumas tentativas, mas creio que a primeira safra de Cabernet Sauvignon e Chardonnay em que me saí bem foi a de 1990.

O que aconteceu depois disso?

Meus vinhos passaram a vender bem nos Estados Unidos. Mas na Argentina nenhum produtor seguiu os meus passos. Não sei o porquê disso. Talvez meus vinhos fossem muito diferentes dos outros vinhos argentinos naquele momento. Os argentinos não se decidiam a fazer um grande vinho. Exportavam, mas apenas vinhos de menor preço. E eu continuava sozinho produzindo vinhos de maior preço e qualidade. Até que, em 1995, a revista norte-americana Wine Spectator fez uma reportagem muito boa sobre os meus vinhos e aconteceu algo muito interessante. Depois da reportagem, uma grande quantidade de estrangeiros se interessou em investir na Argentina, onde havia oportunidade de se fazer bons vinhos e tudo estava barato. Hoje, as principais bodegas (argentinas) são todas de estrangeiros, menos a minha. Portanto, quem me seguiu num primeiro momento foram os estrangeiros. Mas, respondendo à sua pergunta inicial, diria que, se há hoje um reconhecimento dos vinhos Catena Zapata – Catena é o sobrenome do meu pai e Zapata, o da minha mãe – é porque fui o primeiro a investir numa qualidade internacional. Hoje muitas bodegas, sobretudo as estrangeiras, fazem vinhos muito bons na Argentina. Todavia, continuamos sendo os que vendem mais vinhos de qualidade, muito mais do que as outras bodegas. Atualmente essa qualidade internacional se impôs também entre os demais produtores da Argentina. Hoje ninguém faz vinho na antiga tradição espanhola e italiana. Todos seguem o que chamo de estilo internacional.

Quando o senhor percebeu que a uva Malbec poderia ser a grande referência dos vinhos de seu país?

Eu queria seguir os californianos, que tinham eleito duas variedades, o Cabernet Sauvignon e o Chardonnay, para concorrer com os franceses. Mas, na Argentina, havia apenas uma insignificância dessas duas uvas. Por isso, tive de começar a plantá-las. Mas, na bodega familiar, tínhamos muitos vinhedos de outras duas variedades tintas, o Malbec, de origem francesa, e a italiana Bonarda. Meu pai, que era mais nacionalista que eu, me pediu para tentar fazer um grande Malbec. Ele dizia que tínhamos tanto Malbec plantado que era uma pena se não tentássemos …

Qual foi sua reação ao pedido?

Minha experiência com o Malbec era a de um vinho oxidado, com zero de fruta, obtido por um sistema de extração muito suave e leve. Por isso, eu não respeitava essa variedade. Mas, para dar um gosto a meu pai, consenti em tentar fazer um bom Malbec. Tinha tanta desconfiança que iniciei um projeto de seleção clonal do Malbec. Isso lá pelo ano de 1994 ou 1995. Hoje tenho 5 clones extraordinários de Malbec registrados na Universidade da Califórnia, em Davis. Começamos então a elaborar um Malbec no estilo Medoc (uma das sub-regiões de Bordeaux), como se fosse Cabernet Sauvignon, para ver o que saía. Naquela época, o Malbec era um ilustre desconhecido no mundo. Ninguém falava dele. Minha primeira safra elaborada no estilo Medoc foi a de 1994. E, para a minha surpresa, gostaram muito do vinho, sobretudo nos Estados Unidos, não tanto na Europa. Diria que comecei realmente a descobrir o Malbec no fim dos anos 1990, quando ocorreu outro grande achado, mais uma vez de forma casual. Percebemos que o melhor Malbec era o de altura.

Como aconteceu essa descoberta?

Comecei a plantar vinhedos de altura porque os lugares tradicionais onde estavam o Malbec, o Cabernet e o Chardonnay me pareciam um pouco quentes. Pensei em plantar mais no alto, pois a cada 100 metros que se sobe a temperatura média cai 1°C. Foi quando descobri que o Malbec de altitude podia dar outro vinho, muito mais concentrado e complexo. Essas características não são apenas efeito das temperaturas mais baixas, mas também da maior intensidade luminosa na altitude. A planta é um pouco parecida com a mãe humana: seu instinto a leva primeiro a proteger o filho. Para a planta, o instinto a leva a proteger a semente que está no interior da uva. Esse é o instinto básico da videira. Não sei se é instinto, mas essa é a tendência. Portanto, quando a videira percebe que há uma ameaça à sua semente, como a maior intensidade luminosa encontrada nas grandes altitudes, ela reage engrossando a pele (casca) da uva. O engrossamento da casca faz aumentar um dos componentes importantes do vinho, os polifenóis, que dão concentração à bebida. Portanto, quando se busca mais concentração no vinho, precisa-se de mais intensidade luminosa. E a variedade mais sensível a esse fenômeno é o Malbec. Por que é assim, nós ainda não sabemos. Mas temos feitos experimentos. Plantamos a mesma uva em distintas altitudes – a 600, 800, 1000, 1200, 1500 metros – e estamos investigando.

Hoje está claro para o senhor que há uma altitude ideal para cada variedade?

Sim. Acreditamos que, acima dos 1400 ou 1500 metros, a intensidade luminosa é demasiada alta e não traz benefícios. Hoje todos os produtores argentinos sabem que o melhor Malbec vem de zonas mais frias e altas, de mais ou menos 1200 ou 1300 metros. Para o Cabernet Sauvignon, a altitude deve ser um pouco menor, visto que em zonas frias essa variedade desenvolve um certo tipo de tanino que lhe dá amargor. Mas esse frio é muito bom para o Chardonnay.

A seu ver, qual é a imagem atual do Malbec argentino no mercado internacional?

Diria que recentemente, por volta de 2002, os críticos de vinhos começaram a prestar atenção no Malbec. E quem descobriu o Malbec? Esse é um tema, para mim, muito importante. O Malbec da minha região tem uma característica que o diferencia de qualquer outro vinho tinto. Entre todos os tintos do mundo, é o único que tem três virtudes juntas: concentração polifenólica muito alta, que lhe dá densidade; uma suavidade completamente inusual para essa concentração (um Cabernet com essa concentração é mais adstringente); e ausência de amargor. O Malbec não tem o amargor clássico dos tintos. O que confere amargor e adstringência é a presença dos chamados taninos monômeros. Acreditamos que o efeito mais importante da intensidade luminosa é, ao mesmo tempo, aumentar o nível geral de polifenóis, mas diminuir a proporção de taninos monômeros dentro desse total. Esse tipo de tanino é aquele que, com o tempo na garrafa, vai se transformar em polímeros, no chamado processo de polimerização. Falando de uma maneira mais simples, os taninos monômeros são adstringentes e amargos. Quando se polimerizam, tornam-se suaves e doces. No Malbec, em vez de a polimerização ocorrer na garrafa, esse processo acontece na própria planta em razão do efeito da intensidade luminosa.

Talvez por isso o Malbec seja um vinho forte, concentrado, mas que agrada muito as mulheres.

Sim, exatamente. Para o conhecedor de vinhos tintos, o Malbec é um choque. É superdenso e concentrado, mas sem adstringência e amargor. Esse é o Malbec argentino de altura. Tudo isso vem da intensidade luminosa. Experimente um Catena Alta Malbec, um tinto negro, mas mais suave que um vinho branco. Creio que os críticos descobriram isso há alguns anos e agora estão enlouquecidos com o Malbec. Mas há ainda um senão, pois não sei como essa história vai terminar. Me explico: como padrão, as pessoas esperam que um vinho tinto (seco) seja uma bebida amarga e adstringente, que seja o oposto da Coca-Cola ou do suco de fruta. Por isso, o grande tomador antigo de vinhos não sabe como apreciar o Malbec. Mas o novo tomador de vinho – os jovens, que vieram das bebidas mais suaves e não tão amargas – acham-no atrativo. O Malbec tem muita fruta e essa talvez seja a palavra-chave. Na realidade, os conhecedores também querem a suavidade, não a adstringência. Mas, nos tintos clássicos, feitos com Cabernet, Merlot, Syrah e até em alguns Pinot Noir, eles têm que esperar cinco ou seis anos para que ocorra a polimerização. Só então dizem que o vinho está pronto, ou seja, suave e menos amargo. Mas, como tiveram de esperar anos para que isso acontecesse, a fruta, com o passar do tempo, se foi. Portanto, os conhecedores abrem mão da fruta e ganham uma coisa que se chama aroma terciário, dos processos químicos que ocorrem dentro da garrafa. São os aromas redutivos, clássicos, do envelhecimento do vinho. No caso do Malbec, o vinho está suave, sem adstringência, desde o seu primeiro dia. Ele tem a virtude da suavidade e a doçura do tinto envelhecido – e os aromas da fruta. É uma outra realidade, que agrada as mulheres e os jovens. Isso é bom ou mau? Aparentemente, muito bom. Se eu estiver certo, o futuro de nossa região será muito bom.

Costuma-se criticar boa parte dos vinhos do Novo Mundo, inclusive os da Argentina, por serem demasiadamente concentrados, doces e alcoólicos. O senhor concorda com esse ponto de vista?

É uma boa crítica. Vou lhe dizer uma coisa: alta concentração sem harmonia é pior que baixa concentração sem harmonia. A harmonia é a qualidade número um de um vinho. Mas o que significa harmonia? Que nenhum dos atributos básicos do vinho predomina. Que todos estão numa proporção que faz com que nenhum deles seja muito notado. Se há muito carvalho, o vinho será desarmônico. Muito álcool? Desarmônico. Muita acidez? Desarmônico. Muitos polifenóis sem álcool? Desarmônico. Esse é o problema do principiante. Ele coloca (no vinho) muito de tudo para ver o que acontece. Muito carvalho, álcool e polifenóis. Mas, se não sabe fazer vinho, um desses componentes acaba predominando sobre todos os outros. Já vi vinhos não muito concentrados que são muito bons. Por exemplo, meu sócio Domaines Baron de Rothschild (Château Lafite), com o qual temos um projeto (os vinhos da linha Caro), são os mestres da harmonia no mundo. O Château Lafite não é um vinho muito concentrado, mas é a harmonia. Nada predomina. É um prazer derivado do que alguns chamam de equilíbrio, harmonia, homogeneidade, de algo que tem muitos nomes.

O Brasil é o terceiro mercado no exterior que mais consome vinhos de sua bodega, atrás dos Estados Unidos e Inglaterra. Como o senhor vê o mercado brasileiro?

Quando venho ao Brasil, tenho a oportunidade de conversar com os jornalistas, mas também com os consumidores. De todos os lugares do mundo que visito, incluindo Europa e Ásia, acredito que o consumidor do Brasil seja o mais sério. Ele toma o vinho e é muito honesto consigo mesmo. Diz se gosta ou não e deixa claro as qualidades à que dá valor numa bebida Ele se concentra na degustação de uma forma que não vejo em outros lugares.

Mais sério do que o consumidor da Inglaterra?

Na Inglaterra, o consumidor é muito mais superficial. Nos Estados Unidos também, embora lá haja consumidores sérios. Mas os brasileiros são mais sérios. No resto do mundo, o interesse é muito menor. Por isso, é um prazer apresentar os meus vinhos no Brasil. Um prazer! Você vê que as pessoas estudam o assunto e se concentram. Tenho muita fé e quero muito bem ao Brasil. Me encanta e emociona estar aqui. Visito o Brasil pelo menos três vezes ao ano e recebo muitos brasileiros em Mendoza, na bodega. Acho que toda semana temos visitantes do seu país. Quando há brasileiros na bodega, faço questão de recebê-los pessoalmente. Aos demais visitantes, não.

Mas quais as perspectivas do mercado brasileiro para o senhor?

Se continuarmos produzindo vinhos de alta qualidade, estaremos bem no Brasil. Vamos bem em todo o mundo com três variedades, Malbec, Cabernet e Chardonnay.

Imagino que, em suas visitas ao Brasil, o senhor teve chance de provar alguns vinhos feitos aqui. Qual foi a sua impressão?

Sim já provei e devo confessar que gostei de dois vinhos brancos, muito bons, mas não me recordo dos nomes. Entre os tintos, ainda não provei nenhum grande vinho.

*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de julho de 2007 do jornal Bon Vivant

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