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A Bíblia das uvas

Livro mostra as principais características e relações de parentesco de mais de mil variedades usadas para produzir vinho

Suíço José Vouillamoz, pesquisador independente da Universidade de Neuchâtel

O mercado editorial internacional é pródigo em lançar livros repetitivos e sem criatividade sobre o tema vinho, que repisam caminhos já fartamente trilhados por outras obras sem acrescentar algo de substancial ou original ao tema. A quantidade de títulos que falam, por exemplo, das principais regiões e países produtores do mundo é incontável e sua qualidade é extremamente desigual. Felizmente, às vezes surge algo realmente novo e excitante. Esse é o caso de Wine Grapes (Uvas para vinho, numa tradução livre), um catatau de mais de 1200 páginas lançado em outubro e produzido por um trinca de autores, cujos nome se iniciam com a letra J: a renomada jornalista e escritora de vinho inglesa Jancis Robinson, Master of Wine e autora de obras de referência, como The World Atlas of Wine, e The Oxford Companion to Wine; sua assistante Julia Harding, também Master of Wine, jornalista e escritora de vinhos; e o suíço José Vouillamoz, pesquisador independente da Universidade de Neuchâtel e   especialista em estudos sobre as relações de parentesco genético entre diferentes variedades de uva.

Das cerca de 10 mil variedades de uvas que devem existir no mundo, o livro fala de 1,368 diferentes cultivares. Essas são, segundo os autores do livro, as uvas usadas atualmente para a produção comercial de vinho. Obra de caráter enciclopédico, Wine Grapes é uma  livro mais de consulta do que de leitura. As informações históricas e de viticultura sobre cada cultivar estão concentradas num verbete intitulado com o principal nome da uva. O ponto alto do livro são as revelações sobre as origens e os parentescos entre diversas uvas, relações de familiaridade que foram estabelecidas a partir de estudos comparativos do DNA de inúmeras variedades feitos nas últimas duas décadas. Essa é justamente a parte de Wine Grapes em que as pesquisas e os conhecimentos de Vouillamoz foram mais úteis.

Algumas conclusões da obras são desconcertantes mesmo para quem se julga um entendido em vinhos e uvas. A Cabernet Franc —  que, lado da Sauvignon Blanc, gerou a famosa e ubíqua Cabernet Sauvignon —  é de origem espanhola, mais precisamente do País Basco, onde é conhecida pelo nome de Achéria. As uvas Pinot Noir, Pinot Gris e Pinot Blanc são geneticamente iguais, a despeito de suas cascas exibirem cores diferentes. Por isso, os autores do livro dizem que há apenas uma uva, a Pinot, que exibe relações de parentesco com outras 156 variedades, segundo um diagrama de pedigree feito pelo pesquisador suiço. Vouillamoz também apresenta o que ele chama das 13 “variedades fundadoras” da viticultura na Europa Ocidental, cultivares a partir das quais surgiram outras cepas plantadas na região. A seguir, os principais trechos de uma entrevista concedida por email pelo cientista, o J menos conhecido do autores de Wine Grapes, um livro caro (120 dólares na livraria online Amazon), mas indispensável.

Por que você decidiu estudar variedades de uva?

Eu me formei como botânico e fiz minha tese de doutorado em sistemática molecular de plantas na Universidade de Lausanne, Suíça. Sendo também um amante do vinho, quis usar a técnica de impressão de DNA [empregada para identificar indivíduos a partir do material genético] para estudar a origem e a paternidade de variedades de uvas suíças. Recebi uma bolsa de estudos da Fundação Nacional para a Ciência da Suíça e passei um ano fazendo pós-doutorado (2001-2002) na Universidade da Califórnia em Davis, Estados Unidos.

Quando você percebeu que essa técnica seria importante no trabalho de identificação das variedades de uvas?

Quando tive a ideia de estudar as variedades suíças, me dei conta de que a professora Carole Meredith [da Universidade da Califórnia] e seu aluno de doutorado John Bowers tinham descoberto em 1997 a paternidade da Carbenet Sauvignon, que é um cruzamento natural da Cabernet Franc e da Sauvignon Blanc. Esse foi o ponto de partida de uma nova era para a “genética histórica das uvas” e mudou muitas teorias sobre as origens das variedades. .

Como começou a parceria para escrever o livro com Jancis e Julia?

Em 2005, a professora Carole Meredith, que estava aposentada havia 3 anos, indicou meu nome a Jancis Robinson que procurava alguém para atualizar o Oxford Companion to Wine. Jancis me enviou um email, que, confessei a ela mais tarde, achei a princípio  que era um spam … Depois de ter atualizado a terceira edição do OCW em 2006,  sugeri a Jancis que escrevêssemos conjuntamente um livro sobre a história e as origens das mais importantes uvas que são atualmente cultivadas. Jancis ficou entusiasmada com a proposta e nos encontramos em Londres no Café Anglais com sua associada de longa data Julia Harding. Jancis teve uma ideia brilhante: não deveríamos nos limitar às principais variedades, mas cobrir todas as variedades plantadas no mundo usadas para produzir vinhos que estão disponíveis no mercado. Engoli em seco! Comecei a pensar quantos meses/anos de trabalho adicional isso significaria, mas rapidamente aceitei a proposta.

Foi fácil trabalhar com Jancis e Julia?

Elas estão entre os cérebros mais brilhantes com quem já trabalhei e elas trabalham rapidamente e de maneira eficaz. Trocamos dezenas de emails por dia durante quatro anos, ambas são figuras humanas incríveis e graciosas. Adorei, e ainda adoro, trabalhar com elas.

Como vocês dividiram o trabalho para fazer o livro?

Cada um contribuiu com sua competência específica. Julia deu uma enorme contribuição com suas habilidades editoriais e linguísticas, enfocando as características da viticultura, estatísticas, denominações de origem e estilo dos vinhos. A experiência e o estilo inimitável de escrita da Jancis deu ao livro sua marca registrada. Eu me concentrei nas análises sobre impressão de DNA e paternidade, nos sinônimos (dos nomes da uvas), em documentos históricos e na reconstrução de pedigrees. Dito isso, o livro foi feito de uma forma interativa, com muito trabalho coletivo.

Como foi estabelecido o conceito de “variedades fundadoras” que é usado no livro?

Tinha esse conceito na cabeça desde 2006 quando publiquei um artigo científico com minha colega  Stella Grando [cientista italiana do Istituto Agrario di San Michele all’Adige] mostrando que a Pinot e a Syrah eram geneticamente muito próximas. Tendo produzido para Wine Grapes um pedigree com 156 variedades de uvas da Europa Ocidental que são relacionadas por uma relação de paternidade e afiliação, estou convencido de que um pequeno número de ancestrais foram introduzidos em diferentes períodos e lugares e originaram, por meio de cruzamentos posteriores, a diversidade de uvas que temos hoje, possivelmente por introgressão [hibridizações com trocas de genes] com variedades silvestres que existiam localmente. Identificamos 13 uvas modernas que poderiam ser consideradas “variedades fundadoras” [são elas Cabernet Franc, Pinot, Gouais Blanc, Savagnin, Mondeuse Noire, Garganega, Nebbiolo, Teroldego, Luglienga, Muscat Blanc à Petits Grains,Cayetana Blanca,  Rèze e Tribidrag] .

Você acha que as variedades fundadoras se restringem a essas 13 descritas no livro ou haveria outras?

Essas 13 dizem respeito à Europa Ocidental, mas há sem dúvida muitas outras na Europa Oriental, Grécia, Anatólia e no Oriente Próximo, mas a reconstrução do pedigree de DNA dessas variedades ainda está dando os seus primeiros passos.

Na sua opinião, quais são as informações mais surpreendentes que o livro traz?

Sem dúvida, os cerca de mil resultados provenientes de estudos de impressão de DNA e parentesco genético feitos por colegas meus ou às vezes por mim mesmo. Desses trabalhos,  300 são resultados não publicados de pesquisas minhas. A escolha do nome principal de algumas uvas também pode ser surpreendente. Se você procurar por Zinfandel ou Primitivo no livro, vai ser redirecidonado para Tribidrag! Se procurar por  Carignan, será mandado para o verbete Mazuelo.

A Itália é o país com mais variedades de uvas descritas no livro, 377 no total. A Espanha é ou pode ser, segundo o livro, a terra natal de algumas variedades que sempre foram vistas como francesas, como a Cabernet Franc. Você acha que a importância desses dois países foi eclipsada pelo papel e o poder que a França tem no mundo do vinho?

A França teve e ainda tem um papel proeminente no mundo do vinho no que diz respeito aos produtos de alta gama, de luxo, mas não acredito que a Itália e a Espanha tenham sido obscurecidas pela França em todas as categorias de vinhos. Chamamos algumas variedades espanholas pelo seu nome francês, como a Cabernet Franc, a Grenache, a Mourvèdre e a Carignan, porque elas foram frequentemente introduzidas no Novo Mundo por viveiristas da França e foram comercializadas como vinhos varietais com o nome do cultivar no rótulo. Esse nem sempre foi o caso na Espanha ou na França onde o nome das denominações de origem [e não o das uvas] aparecia nos rótulos.

Qual variedade apresentou informações mais controversas e como você resolveram essa questão?

Tivemos muitas variedades com dados controversos e tivemos de tomar uma posição em cada caso, usando argumento genéticos e históricos. Ocasionalmente, criamos um tópico denominado “Outras hipóteses” para discutir teorias alternativas. No norte da Itália vimos, por exemplo, que a Trebbiano di Soave, da Lombardia, a Trebbiano Valtenesi, do Lago di Garda, a  Trebbiano di Lugana, de Brescia, e, mais surpreendentemente de todas, a Peverella, do Trentino, eram segundo as análises de impressão de DNA, idênticas à Verdicchio Bianco, uma variedade muito antiga do Vêneto. Por que escolhi esse exemplo para citar para você? Porque curiosamente a Peverella aparece no Brasil, no Rio Grande do Sul, onde havia 20 hectares dela em 2007. Isso se deve provavelmente à chegada de muitas famílias trentinas ao Brasil no final do século XIX. A técnica de impressão de DNA confirmou recentemente que a Peverella do Brasil também é idêntica à Verdicchio Bianco.

Uma questão editorial: por que vocês preferiram reproduzir no livro as ilustrações usadas por  Viala e Vermorel em vez de utilizarem fotos atuais das uvas?

Essas lindas pinturas com um século de idade foram escolhidas em homenagem ao trabalho seminal de Viala e Vermorel em ampelografia, um trabalho gigantesco publicado entre 1901 e 1910 na forma de sete pesados volumes. Modestamente, Wine Grapes visa a ser seu sucessor moderno.

Quantas relações de parentesco entre uvas você pessoalmente estabeleceu em seu trabalho de pesquisador?

Nunca contei, mas diria que deve ser algo entre 50 e 100.

Que tipo de pesquisa está fazendo agora? Que variedades está estudando?

No momento, não estou fazendo pesquisa alguma, mas estou preparando um possível projeto para estudar de forma mais aprofundada o pedigree das fascinantes variedades da Geórgia.

Como amante do vinho, você tem uma favorita, que você gosta de beber?

Como um marinheiro, tenho uma em cada país … Escolheria a Riesling na Alemanha, Chenin Blanc na França, Nerello Mascalese na Itália,  Arvine na Suíça e Assyrtiko na Grécia.

Você já esteve no Brasil?

Não, mas adoraria ser convidado [a visitar o país].

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One thought on “A Bíblia das uvas

  1. izabella

    Gosto muito dos vinhos…tintos!!! Começo a distinguir os bons dos ruins…..para o meu paladar. E assim vou! Agradeço se receber de vcs as novidades. Abraços etílicos, porém moderados!

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