Um painel do mundo do vinho
Encontro Mistral 2008 é um resumo dos tipos humanos e dos fermentados de uvas que movem essa fascinante indústria
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
19/08/2008
- Vista geral do Encontro Mistral 2008 (Foto: Gladstone Campos/Divulgação)
Vender vinho Made in USA mundo afora não deve ser fácil. Ainda mais se o vinho for feito com uma uva tinta que não tem assim tantos fãs fora da terra do Tio Sam, a Zinfandel. Camille Seghesio oferecia a todos que se aproximavam quatro Zins distintos, de vinhas velhas ou vinhedos específicos, da vinícola de sua família, a Seghesio Family Vineyards, fundada por italianos do Piemonte que se instalaram em 1895 na região de Sonoma, Califórnia. Ora em inglês, ora em espanhol, ou até num português aceitável, explicava as diferenças entre cada rótulo. Um tinha mais o estilo do pai. O outro puxava mais para o avô. Um terceiro exibia mais acidez e elegância enquanto um quarto era mais frutado e potente. Enfim, tinha Zin para quase todo gosto.
Naquele começo de noite de uma quarta-feira, 11 de junho, terceiro dia da etapa paulistana do Encontro Mistral 2008, Camille parecia um pouco cansada em São Paulo. Mas era toda atenção e simpatia com as pessoas que se aproximavam para provar seus vinhos. Havia quase 40 dias que estava fora de casa. Desde 4 de maio, sua rotina era: fazer mala, pegar avião e ir para algum canto do mundo divulgar seus vinhos californianos de sotaque italiano. Passara por vários lugares, China inclusive. Enquanto servia seus rótulos aos participantes do evento, Camille confessava que tinha gente lá nos Estados que não entendia bem o que ela estava fazendo no Brasil, um mercado (ainda) modesto para seus vinhos. “Mas eu acho que, se o mercado é pequeno, é aqui que eles mais precisam de mim.” Assunto encerrado.
Realizado a cada dois anos, o Encontro Mistral é muito mais do que um evento comercial bolado por Ciro Lilla, o dono da importadora Mistral, para jogar luz sobre os vinhos do estrelado catálogo de sua empresa. É um pequeno painel da diversidade de tipos humanos e de fermentados de uvas que compõem e moldam, às vezes com movimentos antagônicos, as feições do andar de cima do chamado mundo do vinho. Para o consumidor comum, o encontro representa uma chance de, sem ter de tomar um avião, conversar com uma gama tão ampla quanto distinta de personalidades dessa fascinante indústria. E, claro, provar suas criações. Algumas personalidades são pouco conhecidas no Brasil, mas nem por isso menos interessantes, como Camille Seghesio. Outras são pra lá de badaladas aqui e internacionalmente, como o argentino Nicolás Catena, que esteve escoltado por seu filho Ernesto, também produtor de vinho, e por Pepe Galante, o enólogo da Bodega Catena Zapata.
Em sua quarta edição, o encontro, que ocorreu de 9 a 11 de junho em São Paulo e no dia 12 no Rio de Janeiro, sempre em hotéis cinco estrelas, trouxe ao país 80 produtores de 13 países e ofereceu aos visitantes a chance de experimentar cerca de 500 vinhos. Não se trata de um evento barato. Para participar de cada dia do encontro, os visitantes tiveram de desembolsar R$ 300. Ainda assim, é visível a cara de felicidade de quem investiu tal soma na empreitada. Uma das novidades deste ano foi a presença, pela primeira vez entre os expositores, de um produtor brasileiro, a gaúcha Vallontano, que hoje está no catálogo da Mistral. Luís Henrique Zanini e Ana Paula Valduga – respectivamente, enólogo e diretora de marketing da vinícola do Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves – se revezavam na tarefa de atender e servir seus tintos (Merlot, Tannat, Cabernet Sauvignon) e espumantes (Brut e Moscatel) aos visitantes. “Estávamos ao lado de grandes produtores da França e da Itália e nosso stand foi muito visitado”, comemorou Zanini, ao final do evento. E, sem patriotada, foi mesmo.
Aliás, quem estava literalmente ao lado da Vallontano era o stand de um bom produtor de Bordeaux, o Château Tour de Mirambeau, representado por seu dono, Jean-Louis Despagne, um habitué do Encontro Mistral. Amante das coisas do Brasil, com propriedades em Fortaleza e Parati, Jean-Louis fala ótimo português e passa boas temporadas por aqui. Dá para se ver pela sua cara corada. Seus tintos e brancos são elegantes e passam longe dos excessos da modernidade. Como está o Brasil do vinho para esse francês que gosta dos trópicos? “O Brasil é um bom mercado, mas ainda pequeno. Ainda não ganho dinheiro aqui. Mas, em 10 anos, se os impostos diminuírem e meu vinho custar a metade do que custa hoje, vamos crescer”, disse Despagne.
Num outro canto do salão do hotel em que se realizava o encontro, estavam, também lado a lado, stands de dois produtores de champanhe, a famosa e exclusiva Bollinger e a mais, digamos, popular Ayala, que, desde 2005, pertence à família Bollinger. A proximidade dos stands tornava ainda mais fácil e prazeroso ao visitante fazer comparações entre os estilos da borbulhante bebida produzida pelas duas casas. “A Bollinger é um champanhe mais masculino e a Ayala é mais feminino’, dizia, quase aos gritos, o elétrico Raymond Ringeval, gerente de exportação da Ayala. Mais sereno, seu colega Philippe Menguy, diretor de exportação da Bollinger, parecia concordar com o comentário. Provavelmente Ringeval se referia ao fato de os rótulos da Bollinger serem mais encorpados e potentes que a média dos champanhes. Sua fermentação costuma se dar em barris de carvalho e os vinhos passam longos anos em contato com as borras antes de chegar ao mercado. Independentemente de se concordar com essa mania de discutir o sexo dos vinhos, quem provou uma Grande Année Brut 97 ou 99 da Bollinger (US$ 252,90 a garrafa) pôde ver por que James Bond escolheu a marca como uma de suas armas de sedução. Não que os champanhes da Ayala fossem de se esnobar para esse ou outros fins. “As mulheres adoram os champanhes zero brut”, prosseguia Ringeral, contradizendo o senso comum que associa as moças apenas a espumantes adocicados. Os champanhes zero brut, ou brut nature, são totalmente secos, sem adição de açúcar no licor de expedição. A Ayala tinha até mesmo um raro champanhe rosé do tipo brut nature, a Cuvée Rosé Nature (US$ 169,00), à disposição dos fãs desse estilo.
O Encontro Mistral não é, obviamente, lugar de crianças. Mas o pequeno Arturo, de 9 anos, era uma compreensível exceção. E o menino se comportou direitinho. Sabia na ponta da língua a composição dos vinhos feitos por seu pai, o enólogo Marco Pallanti, do Castello di Ama, conhecido produtor da região de Chianti Classico, na Toscana. Pallanti também faz vinhos de estilo mais internacional, os chamados supertoscanos, como o L’Apparita, elaborado apenas com a cepa Merlot, mas seu coração parece bater mesmo pelo produto mais típico de sua região, os Chianti Classico, onde a estrela principal é a italianíssima uva Sangiovese. “É preciso mudar, modernizar, mas respeitando o passado”, afirmou o enólogo. Ofuscados por denominações de origem mais nobre dentro da própria Toscana (Brunello di Montalcino e Vino Nobile di Montepulciano) e pelos modernos supertoscanos, ou confundidos com os Chianti comuns oriundos de uma zona mais ampla de produção, os Chianti Classico vivem uma crise de identidade. “Hoje é possível fazer vinho bom em quase todo lugar”, disse Pallanti. “Mas em nossa zona é impossível produzir vinho (bom e) barato. Precisamos de um sistema de classificação que hierarquize toda a produção de Chianti Clássico.” Desde os rótulos mais simples até os mais ambiciosos, sem se esquecer dos vinhos de média guarda, defendeu Pallanti. Como se vê, as fraudes na região de Brunello di Montalcino não são a única dor de cabeça da Toscana vitícola.
Num evento de nível internacional, em que há bons produtores de várias latitudes do globo, salta aos olhos o enorme progresso que os países ibéricos fizeram nas últimas décadas. Foram-se os dias – e já faz um bom tempo – em que os grandes vinhos de Portugal e Espanha se resumiam, respectivamente, ao Barca Velha e ao Vega Sicilia. Esses dois países contam hoje com uma elite de produtores realmente invejável. Provavelmente nomes lusos, como os de Luis Pato (o mago da Bairrada e da cepa Baga) e de José Bento dos Santos (dono da ótima Quinta do Monte d’Oiro), já são mais conhecidos dos brasileiros. Mas não se deve esquecer dos espanhóis. Além dos vinhos da própria bodega Veja Sicilia, o encontro tinha bons rótulos de vários produtores espanhóis, como as catalãs Celler Laurona e Clos Figueras.
Ainda dentro da ala dos espanhóis, merece um destaque à parte os vinhos de Telmo Rodriguez, de 45 anos, que elabora tintos e brancos em sete regiões espanholas com as mais variadas castas locais. “Quando comecei a fazer vinho, até eu pensava que vinho espanhol era só Rioja. Mas o que conhecíamos era a Espanha menos interessante, mais comercial”, confessou o vinhateiro. “Depois fui pesquisando e descobri os tesouros esquecidos do meu país.” Rodriguez viaja pela Espanha em busca de vinhedos e vinhos desprezados que valem a pena ser resgatados. Seu projeto mais comercial na região de Basa (Rueda) acaba financiando e dando suporte para que ele toque empreitadas mais alternativas. Com esse espírito, passou a elaborar, por exemplo, um vinho doce de sobremesa em Málaga, o Molino Real, antiga especialidade dessa região (US$ 119 a garrafa de 500 ml da safra 2005). Para sorte do consumidor, alguns vinhos originais de Rodriguez não custam caro. Elaborado 100% com a uva Monastrell, o Al Muvedre Alicante 06 (US$ 17,90) e o Viña 105 Cigales 04 (US$ 21,50), um blend de Tempranillo e Garnacha, foram alguns dos best buys da maratona vínica.
Talvez por ser um evento seleto e caro (o mundo do vinho é elitista e não é tão grande assim), o Encontro Mistral tem um certo quê de uma grande reunião familiar. Para alguns produtores, trata-se mais de um reencontro do que um encontro. “Reconheço muitas caras de visitantes que estiveram aqui nas edições passadas do evento”, disse a alemã Annette Siegrist, diretora da Dr. Bürklin-Wolf, um produtor da região do Pfalz. Seu stand, com vinhos de várias regiões da Alemanha, tinha uma peculiaridade: exibia três pedras de cores distintas e um chifre de vaca. As rochas eram uma alusão ao terroir dos vinhos e o chifre, ao cultivo biodinâmico. Na próxima edição do evento, o que será que Annette trará ao Brasil, além dos seus Riesling?
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de julho de 2008 do jornal Bon Vivant
- Quase como um tinto
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