Importado, mas feito com jeitinho nacional
Brasileiros fazem vinhos no exterior e exportam para cá
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
08/08/2006
- Produtores Aurea e Eric Recchia: vinhos, castelinho e pousada no Vale do Loire (Foto: Divulgação)
Nos últimos anos, a paixão por tintos e brancos levou alguns brasileiros a uma aposta ousada: produzir vinhos no exterior. Com certeza, a atual incursão em terras estrangeiras não é a primeira aventura desse gênero em que embarcaram filhos desta pátria. Para citar apenas um exemplo mais antigo, o descendente de alemães nascido no sul do Brasil, Carlos Bernardo Weinert mantém desde 1975 uma renomada vinícola na região argentina de Mendoza, a Bodega Y Cavas de Weinert, cujo produtos podem ser encontrados aqui. Mais recentemente, nessa mesma região do país vizinho, a Casa Valduga, conhecido produtor de vinhos da Serra Gaúcha, também adquiriu uma propriedade, da qual sai o Malbec da linha Mundvs. Esta reportagem conta um pouco da história de brasileiros que plantam uva e fazem vinhos na França, Itália e, claro, na Argentina. Todos os produtos podem ser encontrados no mercado nacional.
Entre castelos e vinhas no Vale dos Loire
Depois de uma carreira bem-sucedida na iniciativa privada, em que chegou a ser por uma década (de 1992 a 2002) presidente em Paris da filial local de uma multinacional alemã, o executivo Eric Recchia, de 63 anos, francês de nascimento e carioca de criação, resolveu botar em prática um plano para ter uma aposentadoria agradável, mas bastante ativa. Com o apoio da mulher Aurea, carioca de nascimento, comprou um terreno na francesa Touraine, sub-região do belo Vale do Loire, famoso por seus castelos e, em menor escala, por seus Sancerres e Pouilly Fumés, e se associou à cooperativa local de produtores de vinho, a Confrérie des Vignerons d’Oisly et de Thésée (CVOT). “Somos apenas 25 confrades associados à CVOT, que produz vinhos da região de excelente reputação no mundo vitícola”, explica Recchia, um engenheiro químico de formação com pós em economia e administração.
Situada na Route de Thenay, a menos de um quilômetro da cidade de Pontlevoy, onde a homônima basílica local se destaca como cartão-postal, a propriedade da família, chamada Les Grandes Vignes, conta com seis hectares plantados de uva, todos com a cepa branca Sauvignon Blanc. Com a fruta desses vinhedos, Recchia produz anualmente, nas instalações da cooperativa, 35 mil garrafas do CVOT Les Grands Vignes Sauvignon Blanc – AOC Touraine, que se destina aos mercados francês, inglês, alemão e brasileiro. Aqui o vinho é vendido a pouco mais R$ 52 pela importadora carioca Impexco. “Nosso Sauvignon tem como principal característica a aromaticidade e o respeito às características dessa cepa”, diz Eric. “Frescor e equilíbrio são traços marcantes do vinho, que o fazem, aliás, alcançar uma longevidade pouco habitual para brancos desse tipo.” Quem prova esse Sauvignon sem passagem por madeira costuma concordar com ele. Para um casal oriundo de outro país, sem experiência em vitivinicultura, foi fácil se estabelecer numa tradicional região francesa produtora de vinhos? Com a palavra Eric: “Não há dúvida de que, para um brasileiro, produzir vinho na França é um desafio, ainda mais quando se deve enfrentar a ‘máfia’ dos produtores locais. Todavia, hoje, a integração é perfeita e nossos métodos de trabalho são respeitados pelos demais colegas”. Para o ex-executivo, o famoso jeitinho brasileiro (e carioca, como salienta) tem sido de especial valia nesta experiência bastante fora do comum, que é virar vinhateiro numa terra de vinhos. Ele ainda diz que sua vivência à frente de grandes empresas, brasileiras e estrangeiras, também o ajuda na nova empreitada.
Quem quiser conhecer in loco os vinhos e vinhedos da família Recchia, que vive num pequeno castelo de estilo tourangeau construído em meados do século XIX no interior de sua propriedade, pode se hospedar na pousada montada pelos brasileiros. O casal restaurou o antigo lagar de Les Grandes Vignes, onde se fazia vinho, e ali instalou a pousada Le Pressoir, que dispõe de seis apartamentos, dois deles com suítes. “Na pousada, recebemos os amigos brasileiros e de todos os países do mundo para fazer programas completos de visitas a castelos, vinícolas, degustações dos nossos vinhos e de outros produtores da região”, conta Recchia. Depois de ter lançado a pousada, o mais novo projeto de Eric e Aurea é produzir, daqui a três anos, um vinho de exceção, em quantidade limitada e de excelente qualidade. Para esse rótulo, já plantaram em sua propriedade um hectare da cepa Sauvignon Gris.
Na terra dos etruscos
Comprar um vinhedo na mítica Toscana, um paraíso para amantes (ou não) do vinho, era caro demais e haveria ainda um outro complicador: como conciliar a vida em Roma e os constantes deslocamentos para cuidar dos afazeres de uma propriedade rural vitícola muito afastada de casa? A alternativa foi arrematar terras situadas a cerca de duas horas de carro da capital italiana, mais precisamente no vale de Vaiano, dentro dos limites da Tuscia, área de importância histórica por ter abrigado os antigos etruscos, que se situa ao norte do Lazio, perto das divisas com a Úmbria e a Toscana. Foi o que fizeram o armador italiano, Paolo d’Amico, e sua mulher Noemia, uma carioca que fora representante da grife de moda Dior no Brasil nos final dos anos 1980. Começaram o sonho de produzir vinho plantando Chardonnay na paisagem montanhosa da região, esculpida pela atividade vulcânica. A primeira safra do empreendimento foi colhida em 1992 e o comércio dos vinhos da cantina Paolo e Noemia d’Amico se iniciou dois anos mais tarde.
Aos poucos, o projeto se firmou e passou a ocupar o centro da vida profissional de Noemia, cujo amor ao vinho vem de sua família, de origem portuguesa. “No início, produzíamos 30 mil garrafas por ano e hoje já estamos em 100 mil”, afirma a brasileira, que percorre o mundo divulgando seus tintos e brancos. A propriedade dos d’Amico, que conta com construções do século XVI e uma torre medieval, compreende 250 hectares, dos quais 40 contam com vinhedos. Noemia diz que a vinícola ainda pode aumentar a sua produção, mas estabelece como limite máximo 200 mil garrafas por ano. No Brasil, os vinhos do casal – dois tintos e quatro brancos, com destaques para os dois Chardonnays, o Calanchi di Vaiano e o Falesia — eram vendidos até recentemente pela importadora do grupo Fasano, de São Paulo. Hoje se incoporaram ao catálogo da Mistral.
Não foi fácil para Noemia, mulher e sem experiência profissional com tintos e brancos, se fazer respeitar num ambiente dominado por homens. “Me diziam que eu era bonita, mas que não ganharia dinheiro com meus vinhos”, relembra a brasileira. Boa parte das dificuldades iniciais ficaram para trás, mas, em alguns países de cultura machista, ainda é complicado vender seus rótulos. “Os japoneses, por exemplo, resistem à idéia de fazer negócio com mulheres”, comenta Noemia, que exporta seus produtos para lugares tão distantes como a China.
O investimento na Argentina que virou vinho
A idéia não era produzir vinhos no exterior. Era, a título de investimento, adquirir um terreno apropriado para o cultivo de uvas. Depois de confrontar terras de vários cantos do mundo para tal finalidade (Chile, Portugal, Califórnia e Brasil), o engenheiro civil carioca Euclides Penedo Borges, 66 anos, optou por comprar uma propriedade na Argentina. Ao lado de quatro sócios, arrematou uma finca em Luján de Cuyo, na província de Mendoza, principal zona vitivinícola do país vizinho. Nascia a Finca Don Otaviano, nome da propriedade, que se estende por 69 hectares, 24 dos quais já produzindo uvas e outros 24 em processo de implantação de parreirais. “Posteriormente, surgiu a idéia de usar parte de nossas uvas para elaborar vinhos em vinícolas vizinhas”, diz Borges. O primeiro rótulo da Don Otaviano, que foi elaborado numa vinícola da região de Mendoza (a CAP Vistalba), chegou ao Brasil no início deste ano. Trata-se do Penedo Borges Malbec Roble Clásico Superior 2004, do qual foram produzidas 6 mil garrafas, todas endereçadas ao mercado brasileiro, O vinho custa em média R$ 58 e é distribuído pela importadora Reloco, do Rio de Janeiro.
Segundo Borges, esse primeiro rótulo da Don Otaviano é um vinho top. “Nossos dois próximos vinhos serão da faixa intermediária, de elaboração bem cuidada, com suporte de um experiente enólogo local”, comenta o engenheiro-civil, que há mais de dez anos é professor e dirigente da Associação Brasileira de Sommeliers, seção Rio de Janeiro, e autor de dois livros sobre tintos e brancos (“ABC Ilustrado da Vinha e do Vinho” e “110 Curiosidades sobre o Mundo dos Vinhos”, ambos publicados pela editora Mauad). Em outubro deste ano, deve chegar ao Brasil o o Penedo Borges Malbec-Merlot 2004, do qual foram produzidas 12 mil garrafas. Para 2007, uma parte considerável das 16 mil garrafas do Penedo Borges Malbec 2006 deve aportar por aqui. O primeiro vinho da Don Otaviano só foi vendido no Brasil, mas, do segundo rótulo em diante, uma pequena parcela da produção se destinará ao próprio mercado argentino e o resto virá para cá. “Por enquanto, só fazemos tintos, mas, no futuro, produziremos também brancos” diz Borges.
O engenheiro civil, que também é articulista da revista Adega e do Jornal Vinho&Cia, não teve que se mudar para Mendoza a fim de tocar a iniciativa vitícola. Os cinco sócios se revezam na condução in loco da Don Otaviano, e Borges vai à Argentina de três a quatro vezes por ano, em viagens que duram de uma a duas semanas. Há ainda um gerente local argentino e um encarregado da propriedade. O brasileiro afirma que não houve nenhuma dificuldade em se estabelecer um empreedimento de brasileiros no país vizinho. “Formos muito bem recebidos pelos produtores locais, muitos dos quais são estrangeiros”comenta Borges. “Nosso vizinho é a Bodega Septima, de espanhóis. Com a vinícola que contratamos para produzir nosso vinho, temos excelente relacionamento, inclusive de caráter pessoal.”
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de julho de 2006 do jornal Bon Vivant
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