O vinho sem frescuras
Dono da importadora Mistral, Ciro Lilla critica o esnobismo dos especialistas
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
09/03/2006
- Lilla: “Nunca o interesse pelo vinho foi tão grande no Brasil – e nunca o dinheiro para comprar foi tão pouco.” (Foto: Marcos Pivetta)
Dono de uma fábrica de equipamentos para a indústria de café na Grande São Paulo, o simpático paulistano Ciro Lilla, 57 anos, é mais conhecido do público da gastronomia por ser o proprietário de uma respeitada importadora, a Mistral, que conta em seu catálogo com 2 500 rótulos provenientes de 15 países. E também por suas opiniões singulares sobre o universo dos tintos e brancos. Sem frescura ou papas na língua, Lilla dá sua visão, às vezes polêmica, sobre quase todos os aspectos do mundo do vinho. Sempre com bom humor, inteligência e combatendo o elitismo que ronda o setor. “Nunca o interesse pelo vinho foi tão grande no Brasil – e nunca o dinheiro para comprar foi tão pouco. A situação é essa”, diz o importador, que há mais de 30 anos descobriu o prazer de um bom copo depois de ler um bom livro. Um jeito diferente de se iniciar nos domínios de Baco, mas que tem tudo a ver com outra de suas paixões, a história de Napoleão, sobre a qual já leu centenas de obras.
Divulgador da cultura do vinho no Brasil, tendo sido colaborador de diversas publicações, Lilla diz que, depois da carga tributária excessiva, o maior inimigo do setor é a mistificação em torno dos aromas presentes na bebida. “Isso não tem nada a ver com apreciação de vinho e dá medo nas pessoas”, comenta. “O que importa é o conjunto da obra, o jeitão do vinho, e não um aroma específico.” Ele acredita que o produto importado de qualidade pode ser um aliado dos rótulos nacionais. ”Para mim, o vinho nacional deveria ficar com a base do mercado e o importado, com os vinhos mais caros”, afirma ele. “Isso me parece lógico.” As opiniões e dicas de Lilla podem ser conferidas no boletim diário “Mundo do Vinho” que mantém na Rádio Bandeirantes, de São Paulo, ou em seu livro “Introdução ao Mundo do Vinho”, lançado em 2004 pela editora Martins Fontes. Abaixo trechos da longa entrevista que o importador concedeu ao Bon Vivant na sede de Mistral, em São Paulo:
Como começou seu interesse por vinho?
Quando era muito jovem, bebia vinho esporadicamente. Até que um sábado, às duas horas da tarde, comprei na Livraria Cultura (muito conhecida em São Paulo), o livro Larousse des Vins. Fui para casa e comecei a ler. Às sete horas da noite, já era um apaixonado por vinhos, um mundo único e muito interessante. E nunca mais deixei de sê-lo.
Isso aconteceu há quanto tempo?
Há uns trinta e poucos anos. Naquela época, havia pouquíssima literatura sobre vinhos. E o livros que existiam eram para quem já entendia do assunto. Em português, não tinha nada. Mas eu lia em francês e em inglês. Apesar das dificuldades, foi bom aprender um assunto dessa forma, tendo você mesmo que garimpar as coisas. Continuei lendo e entrei na Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho de São Paulo (Sbav/SP). Me lembro que organizei a primeira degustação de grande vinhos aberta ao público. Isso porque antes o que tinha eram as confrarias, um coisa muito elitista, fechada. Quem conhecia de vinho não queria que os outros conhecessem. Ainda tem um pouco disso. Mais tarde fui diretor de degustação da Sbav e depois fui presidente da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo (ABS/SP). Também sempre colaborei com revistas e escrevi artigos sobre vinhos. O meu interesse pelo assunto foi ficando cada vez mais forte. Como eu também viajava bastante em função do meu outro trabalho, a fábrica de máquinas de café, que exportava e ainda exporta muito, tive a chance de conhecer muitas pessoas, as regiões produtoras e provar vinhos. Aqui no Brasil a oferta de vinhos antes dos anos 1990 era muito pequena.
Por que resolveu transformar sua paixão por vinhos num negócio?
Foi uma coincidência. Em 1993, um amigo, o Antonio Lapa Silveira, me convidou para comprar a Mistral. A importadora existia desde 1974. Ela tinha sido de um francês, o Gérard Weil, um amigo, que está vivo e até hoje trabalha com a gente. Gerard foi dono por dez anos da Mistral e depois a vendeu para o Geraldo Alonso, um dos donos da Norton Publicidade, grande figura. Só que o Geraldo morreu algum tempo depois e os filhos dele não tinham nenhum interesse na importadora. E contrataram o Gerard de novo para tomar conta da Mistral. Se já é difícil tocar uma importadora quando se é apaixonado por vinho, é muito pior tocar um negócio quando não se tem interesse nele. Então os filhos resolveram fechar ou vender a Mistral. Compramos a Mistral, mas algum tempo depois o Lapa saiu da sociedade e eu fiquei.
É difícil importar vinho no Brasil?
O problema não é haver exigências. É ser uma coisa sem lógica. Nos Estado Unidos, por exemplo, se há um erro na papelada (de importação), alguém corrige a informação à mão. Aqui há muita burocracia. E é uma coisa burra. Não se deixa de importar uma caixa de vinho por causa da burocracia. Só que a burocracia atrapalha os importadores de vinhos de pequenos produtores, que não só não competem com o vinho nacional, como criam o mercado de vinhos, pois esses produtos têm glamour. A burocracia para importar cinco caixas ou mil caixas é a mesma. Com uma diferença: o produtor pequenininho, do interior da França, é o que erra a documentação. Ele sofre com a burocracia, não tem tempo, não tem gente para cuidar disso. Para as grandes indústrias, que fazem milhões de caixas de vinhos, você pede qualquer coisa, eles apertam um botão no computador e a papelada sai.
Há muito contrabando de vinho?
Nos três estados do Sul, e agora também em Minas Gerais, esse é um grande problema para os produtores nacionais e para os importadores. O contrabandista não paga imposto algum. Existe um volume gigantesco de vinho entrando assim no país. No ramo, todo mundo sabe disso. Primeiro, veio o vinho muito caro e depois o resto. De dois anos para cá, essa situação explodiu. Estou falando de caminhões e caminhões de vinhos contrabandeados. Já ouvi dizer até que há contrabandista dando curso de vinho. É coisa pesada. Na Câmara Setorial do Vinho, há hoje um consenso: a burocracia só ajuda o vinho que compete com o vinho nacional. A burocracia e um ICMS de 25% levam à sonegação e ao contrabando. O vinho tem uma carga tributária punitiva. Um vinho nacional paga 47% de impostos. E o importado tem tudo isso mais o imposto de importação e os custos portuários, um dos mais caros do mundo.
A partir de que preço um vinho importado deixa de concorrer e se torna um aliado do vinho nacional?
Hoje, com esse cambio baixo, acho que um vinho importado abaixo de R$ 10, ou R$ 15, é um concorrente. É o caso, com certeza, daqueles vinhos argentinos de R$ 6. Mas também acho que os gaúchos têm de entender, e entenderam, que eles também têm de fazer o trabalho deles. O espumante brasileiro é bom. É um dos melhores do Novo Mundo. Caramba, isso não é pouca coisa. O que não podemos querer é que uma mesma região, a Serra Gaúcha, seja boa para tintos, brancos e espumantes. Isso praticamente não existe em nenhum lugar do mundo. Você vai à região de Champagne e vê que o espumante deles é o melhor do mundo, mas que o vinho branco e o tinto deles não são bons. Por que isso ocorre? Pelos mesmos motivos que fazem o champanhe ser aquela maravilha. O solo da região é ácido, faz frio. Então qual é a nossa vocação? Na Serra Gaúcha, é o espumante. Eu falava isso há alguns anos. Mas me diziam que o consumo brasileiro de espumantes era uma colherinha de chá por habitante por ano. É verdade, mas também não se fazia nenhum esforço para incentivar o consumo da bebida. Em Portugal, na Bairrada, onde há o famoso leitão da região, todo mundo está tomando espumante com esse prato. Aqui há todo um trabalho a ser feito. Torço para a indústria nacional em geral, tenho orgulho dela.
Mas você não acha que nas últimas safras saíram vinhos tintos bem interessantes da Serra Gaúcha?
Não digo que não dá para fazer bons vinhos na Serra Gaúcha. Até acho que dá. Também é preciso fazer um parêntese aqui: pode ser que o clima esteja mudando a favor do vinho na região. Mas, deixando isso de lado, para mim, o caminho do vinho nacional seria a seguinte. A vocação da Serra gaúcha é o espumante. Isso deveria ser patenteado. Até porque, quando o mundo souber que há um vinho nacional de nível internacional, isso vai ajudar a todos os outros vinhos. A fronteira gaúcha, e talvez outras regiões que ainda não tenham sido descobertas, servem para a produção de tintos e brancos. Vejo o Vale do São Francisco como um lugar para produção em massa de vinho muito barato, que não é o que se está querendo fazer por lá. Estão querendo vender o peixe de que o vinho de lá é melhor que o do Sul. E não é. Onde tem clima para produzir tinto e branco bom é no Sul. Lá tem a vocação para matar a sede de vinho do brasileiro. O vinho do São Francisco deveria vir numa embalagem muito simples, com rolha sintética, e muito barato.
O momento atual do vinho no Brasil, com muita exposição na mídia e interesse das pessoas, é melhor já vivido pelo setor?
Nunca o interesse pelo vinho foi tão grande no Brasil – e nunca o dinheiro para comprar foi tão pouco. A situação é essa. No início de 2005, fizemos uma promoção na Mistral, um bota-fora , e achávamos que não havia cultura no Brasil para consumo de certos vinhos, como Barolos e grandes Borgonhas. Mas esses vinhos foram os primeiros que acabaram na promoção. O pessoal conhece. Mas falta poder aquisitivo, e não só para vinhos.
Você é um grande crítico das descrições pomposas de aromas em vinhos. Com o interesse maior pela bebida, essa situação não está cada vez pior?
Tirando a carga tributária, esse é o maior inimigo do vinho no Brasil. Duas coisas levam a essa situação: a primeira é o exibicionismo de alguns degustadores; e a segunda é um joguinho ao qual certo número de pessoas se dedica. Em parte, é um jogo de poder. E você pode falar qualquer coisa que ninguém vai contrariá-lo. Em vez apreciar o vinho com a comida, o pessoal fica então vendo se a bebida tem aroma disso ou aquilo. Isso não tem nada a ver com a apreciação de vinho e afasta as pessoas da bebida. O que importa é o conjunto da obra, o jeitão do vinho, no máximo o tipo de aroma, e não um aroma em especial. Esse joguinho provoca medo em muitas pessoas, que não encontram os mesmos aromas dos degustadores e ficam com ar de derrotadas. Tenho várias histórias para contar a respeito disso. Um cara que hoje escreve sobre vinhos certa vez disse que havia aroma de cassis num vinho, mas de cassis pisado. Mas cassis custa uma fortuna no Brasil. Ninguém sabe como é cassis pisado. Essa descrição só pode significar alguma coisa para um menino francês, ou europeu, que viveu no campo. Não para um paulistano. E tem mais: quando você conversa com um produtor de vinho, ninguém fala desse jeito sobre os aromas. É verdade que, às vezes, o produtor faz carnaval quando está com visitante. Ele acha que as pessoas esperam que ele vá dizer alguma coisa desse gênero. Mas, no geral, ele não fala sobre isso.
O que você bebe?
Sou fanático pela variedade. Fico doente se fico sem tomar o vinho de uma região por muito tempo. Minha mãe é uma grande cozinheira de comida caseira. Minha mulher não cozinha todo dia, mas tem um grande habilidade: ela cozinha o que você come no restaurante. Então chega o fim de semana, nós vamos para nossa casa de campo e é uma festa para mim e os filhos. Falamos o que queremos comer e ela faz. Em função do que vai ter no almoço ou no jantar, vou para a adega e procuro o que acho que vai combinar melhor com a comida. Mas não é nada muito pensado. É verdade que, depois de anos, percebi que o meu maior consumo era de vinhos europeus. Em degustações, adoro vinhos sul-americanos, dos Estados Unidos e australianos. Mas não há uma região da Europa que seja a que eu mais consumo. Eu bebo vinho todo dia.
Você se considera um bon vivant?
A minha vida não é nada do que as pessoas imaginam. Acham que estou sempre viajando e bebendo vinho. Eu sou bon vivant, mas não no sentido que as pessoas imaginam. Não conheço ninguém que trabalhe o mesmo número de horas que eu. Mas eu faço o que gosto e tenho tido sucesso nas coisas que faço. Sou muito bem casado. Tenho três filhos excelentes. Tenho saúde, dinheiro para comprar o que acho importante, como os meus livros. Nesse sentido, sou um bon vivant, pois curto essa vida maluca que eu levo. É verdade que viajo muito, mas é não mais como antigamente. É gostoso visitar região vinícola como amador. Hoje, quando encontro o produtor, o assunto é: ele quer que eu venda mais o vinho dele, eu quero que ele cobre menos pelo produto. É diferente. Mas é uma vida interessante. Não tenho do que me queixar.
*Esta reportagem foi originalmente publicada na edição de março do jornal Bon Vivant
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Oi, Ciro Lilla, tudo bem?
Li a matéria acima e escuto diariamente seus comentários na Band. Sinto uma pontinha de orgulho e felicidade em seu sucesso porque, eu acho, fiz parte dessa história.Quando entrei na Norton,em 1989, como gerente Adm/Fin.da ELGE e
Contador de várias empresas do grupo, inclusive da Mistral,uma das minhas responsabilidades era colocar os balanços e as pendências fiscais e tributárias dessas empresas em ordem.Lembro perfeitamente que, pouco anos depois,fui incumbido pelo Sr.Ricardo Alonso,diretor da ELGE e um admirável ser humano,à apresentar e comentar o Balanço Anual da Mistral aos senhores Ciro Lilla e Antonio Lapa em reunião, somente nós três, na rua Amaral Gurgel.Felizmente a transação foi concretizada e a MISTRAL se tornou Referência Nacional.Parabéns Ciro Lilla e crescente sucesso.Abraços