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São Francisco, Pune e Hua Hin

A viticultura tropical no Brasil, Índia e Tailândia

Marcos Pivettawww.jornaldovinho.com.br*

05/05/2006

Vinhedos flutuantes da região de Hua Hin: uma das formas da viticultura na Tailândia (Foto: Umberto Camargo)
Vinhedos flutuantes da região de Hua Hin: uma das formas da viticultura na Tailândia (Foto: Umberto Camargo)

Região de Petrolina, Vale do São Francisco, 9 graus de latitude sul. Distrito de Pune, em Maharashtra, estado do oeste central da Índia, 18 graus de latitude norte. Montanhas de Hua Hin, no sul da Tailândia, 11 graus de latitude norte. Essas são três zonas do globo terrestre onde se pratica a chamada viticultura tropical, que produz uvas para consumo in natura ou como passas e também para fazer sucos e vinhos. Durante duas semanas de fevereiro, os pesquisadores Jorge Tonietto e Umberto Carmargo, da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves (RS), que conhecem bem o cultivo da videira em terras quentes de nosso país, puderam conferir in loco como os asiáticos trabalham os parreirais e fazem tintos e brancos. Viram progressos evidentes nos vinhedos e nas vinícolas indianas e tailandesas, mas voltaram convencidos de que, se o assunto é vitivinicultura em clima cálido, o Brasil ainda está na liderança entre os membros dessa nova geografia da uva e do vinho. “No Nordeste, estamos um pouco mais avançados do que eles”, diz Tonietto, especialista em zoneamento vitivinícola. “Mas eles dominam perfeitamente o cultivo da videira.” Seu companheiro de viagem é mais enfático ao comparar o estágio dos três países. “Estamos muito à frente deles”, afirma Camargo, coordenador do setor de melhoramento genético da videira da Embrapa. “Falta gente local preparada para o trabalho nos vinhedos e eles dependem muito da consultoria de estrangeiros.”

A dupla de pesquisadores brasileiros foi convidada a participar em Pune, na Índia, de um simpósio sobre vitivinicultura tropical, tema que no mundo do vinho, acostumado a produzir e consumir produtos oriundos de climas temperados, ganhou espaço nos últimos anos. Depois do evento científico, Tonietto e Camargo visitaram produtores indianos de uva e de vinho, como o conhecido Château Indage. Em seguida, foram para a segunda escala da viagem à Ásia, a Tailândia, onde conheceram parreirais inusitados, como os exóticos vinhedos flutuantes e travaram contato com a Associação do Vinho Tailandês. Em ambos os países, os pesquisadores perceberam mais pontos em comum que diferenças em relação à viticultura e os vinhos do Nordeste brasileiro. Tanto na Índia como na Tailândia, as cepas destinadas à produção de vinhos finos que, até agora, melhor se adaptaram aos rigores do sol inclemente são a tinta Syrah (Shiraz) e a branca Chenin Blanc – a exemplo do que ocorre na região de Petrolina. “Há vinhedos com outras variedades, como a Cabernet Sauvignon, mas essas duas uvas são as dominantes”, comenta Tonietto. Em geral, as maiores vinícolas de ambos os países dispõem de boa tecnologia e não é raro encontrar vinhedos plantados em espaldeira, sistema de condução da parreira que dá uvas de melhor qualidade para a produção de vinhos. Na época da seca, como no Nordeste, é preciso irrigar os parreirais. Em alguns aspectos, segundo Camargo, a viticultura asiática se parece até mais com a de Jales, no interior paulista, voltada basicamente para a produção de uvas para consumo in natura, do que com a do Nordeste brasileiro. Mas não faltam semelhanças com os vinhedos do Vale do São Francisco.

Como no semi-árido brasileiro, onde é possível colher cinco safras a cada dois anos, indianos e tailandeses podem, se quiserem, vindimar mais de uma vez por ano. Essa prática é comum entre os produtores asiáticos de uva para consumo in natura. Mas os que fornecem uvas finas para vinho preferem podar a videira duas vezes ao ano (em abril e em setembro) e, assim, abrir mão da colheita com menor potencial de qualidade, que aconteceria durante o quente e úmido verão asiático, quando, devido às monções, pode cair até 1 600 milímetros de chuva entre junho e agosto. Dessa forma, a safra propriamente dita de uvas para tintos e brancos acaba acontecendo em pleno inverno no hemisfério Norte, entre fevereiro e março. No Vale do São Francisco, a melhor colheita também se dá no inverno, entre os meses de julho e setembro, quando ainda faz calor de dia, mas chove pouco e há até um certo friozinho noturno, provocando uma queda na temperatura que favorece a fixação da cor e o desenvolvimento de aromas no vinho.

E a qualidade dos tintos e brancos das novas latitudes? Embora produzam apenas um milhão de litros de vinho por ano (mais ou menos o que a Miolo sozinha engarrafa no Nordeste), os tailandeses parecem dispor de rótulos mais interessantes que os indianos. Essa pelo menos foi a impressão que ficou entre os pesquisadores. “Os tailandeses também estão fazendo um esforço para difundir a idéia de que seus vinhos são o parceiro ideal para a culinária local”, diz Tonietto. A produção anual de vinho na Índia, no entanto, é bem maior que na Tailândia, cerca de 5 milhões de litros.

A viticultura na Tailândia foi realmente o grande destaque da viagem. Ao desembarcarem na região montanhosa de Hua Hin, cerca de 200 quilômetros distante da capital Bangcoc, os pesquisadores da Embrapa tiveram uma surpresa agradável: descobriram que a maior parte das videiras locais usa um porta-enxerto (ou cavalo, no jargão do produtor) desenvolvido pelo Instituto Agronômico de Campinas, o IAC 572, bastante vigoroso e resistente a doenças. “Os tailandeses o chamam simplesmente de porta-enxerto Brasil”, afirma Camargo. O cavalo forma as raízes que abastecem a planta com os nutrientes do solo. Até nos exóticos vinhedos flutuantes – filas de videiras plantadas entre pequenos canais de água, que conferem um ar de mini-Veneza ao parreiral e são o cartão-postal da viticultura tailandesa – está o onipresente IAC 572. Também no Brasil esse porta-enxerto de videira é o mais usado em áreas quentes. Como o cavalo nacional deu um pinote e tanto e chegou à zona das monções, ainda é um mistério para Tonietto e Camargo. Que fica para ser desvendado numa próxima viagem.

*Esta matéria foi originalmente publicada no edição de março de 2006 do jornal Bon Vivant

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