Cenas de um encontro
Um breve resumo do que ocorreu na megadegustação da importadora Mistral
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
07/07/2006
- Luis Pato: badalado produtor da região portuguesa de Bairrada (Foto: Divulgação/Gladstone Campos)
– Qual vinho você me recomenda?, perguntou o rapaz, membro de um festivo grupo de pessoas que se avolumava em torno do pequeno stand de Luis Pato, o badalado produtor da região portuguesa de Bairrada que fez da Baga uma casta de reconhecimento internacional.
– Todos!, respondeu, sem pestanejar, o vinhateiro luso. E pôs-se a servir o moço. Espumante Baga Rosé. Brancos sem e com passagem por madeira. Um tinto leve. Um varietal de Touriga Nacional. Quinta do Ribeirinho Primeira Escolha 2003. O bom Vinhas Velhas 2003. E, para terminar, o ótimo Vinha Pan 2003.
Luis Pato servia e falava. Falava e servia. “Quando são colhidas no final de agosto, a Baga usada no espumante rosé já está mais madura do que estarão as uvas da região de Champanhe ao término de sua colheita”, garantiu, talvez com uma ponta de exagero. “É um vinho com a graduação (alcoólica) do passado e o estilo do futuro”, asseverou sobre o varietal de Touriga Nacional, com pouco mais de 12 graus de álcool e uma vinificação moderna, fácil de agradar ao consumidor de hoje. Frasista, esse Luis Pato. O nome de Jancis Robinson não lhe saía da boca. Quando servia seus rótulos de maior prestígio, o enólogo sempre anunciava as notas da afamada crítica britânica: 18 pontos para esse vinho, 18,5 pontos para aquele outro. Jancis adota uma estranha escala de pontuação para tintos e brancos, que vai de 0 a 20 pontos. Ah, esses ingleses!
Cenas como as descritas acima, protagonizadas por anônimos consumidores e renomados produtores internacionais, não faltaram no Encontro Mistral 2006, evento promovido por essa conhecida importadora paulista. A terceira edição do encontro, que se estendeu por cinco dias, entre o fim de maio e o início de junho, trouxe a São Paulo e ao Rio de Janeiro mais de 80 proprietários, enólogos ou representantes de vinícolas de 14 países. Alguns dos melhores produtores do Velho e do Novo Mundo serviram taças e mais taças de vinho a alegres enófilos. Ok, o passaporte para dividir um Riesling com Jean Michel-Deiss, o mago alsaciano do terroir e da biodinâmica, ou um delicado branco do Friuli com o discreto Maurizio Felluga não era barato para os padrões nacionais: R$ 210 para participar de um dia do evento. Mas, para usar a linguagem burocrática que tomou conta do mundo do vinho, o Encontro Mistral é provavelmente a (mega)degustação do ano de melhor custo-benefício.
Afinal, onde mais é possível, em questão de minutos, encontrar e ser servido por René Barbier, dono e enólogo do Clos Morgador, vinícola de referência da região espanhola do Priorato, Nicolás Catena Zapata, da homônima casa argentina que dispensa maiores apresentações, e Alois Kracher, produtor austríaco de suculentos vinhos doces? E, por falar em néctares de sobremesa, os aprecidaores desse tipo vinho se deliciaram com um trio húngaro da vinícola Tokaji Oremus, que pertence aos espanhóis do mítico produtor Vega Sicilia. Apresentados e servidos por Yolanda Perez, que morou no Brasil e fala um bom português, o Late Harvest 2002 e, em especial, o Tokaji Aszú 5 Puttonyos 1999 e o Tokaji Aszú 6 Puttonyos 1999 — cheios de botrytis, a chamada podridão nobre que concentra o açúcar da uva sem consumir sua acidez – eram de fazer diabético descuidar dos níveis de glicemia. Um perigo.
Eventos desse porte, com produtores de todos os cantos do mundo, são uma babel de rótulos – e línguas. Ouve-se de tudo: francês, italiano, espanhol, alemão. E, claro, muito inglês, idioma que também se universaliza no mundo do vinho. Devido à grande presença de produtores portugueses, como João Portugal Ramos, do Alentejo, e Francisco Olazabal, da Quinta do Vale Meão, no Douro, nosso idioma também era voz corrente no encontro. Aliás, entre os produtores italianos havia uma dona de vinícola da região do Lazio, Noemia D’Amico, capaz de discorrer sobre a mineralidade de seus dois Chardonnays, os surpreendentes Falesia e Calanchi di Vaiano, em português e sem sotaque. Explica-se: Noemia é brasileira, casou-se com um italiano, o armador Paolo D’Amico, e mora em Roma há 20 anos. “Sou descendente de portugueses e sempre sonhei em trabalhar com vinho”, contava a bonita carioca a seu interlocutores.
Em geral, as doses de vinho servidas aos participantes do Encontro Mistral ficavam entre o justo e o generoso. As exceções confirmaram a regra. Jean-Luc Pépin, diretor-proprietário do Domaine Comte Georges de Vogüé, lendária propriedade da Borgonha que remonta a 1450, contava as gotas de seus esplêndidos e caros tintos. Mas é forçoso reconhecer: gotas assim não caem nos copos a toda hora. Elegância e sensualidade: duas palavras associadas aos quatro borgonhas (o village Chambolle-Musigny, o premier cru Les Amoreuses, e os dois grands crus, Bonnes Mares e Musigny), todas da safra 2002, ainda jovens, que Pépin oferecia com parcimônia aos visitantes de seu stand. “Trouxemos vinhos de uma só safra para realçar as diferenças de terroir de cada appellation”, explicava Pépin.
Algumas personalidades circularam pelo encontro, como o músico Ed Motta, amante de um bom borgonha e da boa mesa. Elas chamavam a atenção, mas não tanto quanto os vinhos e os produtores. Copo vai, copo vem, e as conversas com os vinhateiros enveredavam para um tema caro aos importadores e produtores nacionais: o potencial do mercado brasileiro de vinhos. Todos se assustavam com a carga de impostos que se paga aqui sobre seus produtos, um dado da realidade nacional que impede uma maior popularização de tintos e brancos, mas estavam esperançosos em fincar uma pequena bandeira em solo verde-e-amarelo. Nos papos com os representantes das vinícolas, também era possível perceber o encantamento com a China, um novíssimo (e complicado) mundo de consumidores que somente agora começa a descobrir os encantos dos fermentados de uva. Achar algum diretor de vinícola que não tivesse estado em Pequim ou Shangai nos últimos meses era tarefa das mais árduas. Enquanto o Brasil não encontra seu rumo na economia, o planeta China, que já se impõe em vários setores industriais, começa agora a botar as suas taças de fora no mercado de tintos e brancos.
Em meio a tantas vinícolas renomadas, num evento em que há centenas de garrafas a serem degustadas, muitos consumidores são obrigados a sacrificar alguns nomes de peso. Em um só dia, não dá para provar de tudo. Stands de menor movimento, ou capitaneados por produtores mais discretos, acabam, às vezes, sendo relegados a segundo plano. Uma boa tática, nesses eventos, é experimentar os rótulos das mesas mais concorridas, mas também dar uma paradinha nos cantinhos mais calmos. No contrafluxo da pequena multidão de súditos de Baco, bons vinhos e histórias podem estar à sua espera. Esse era o caso do stand do Mas de Dalmas Gassac, onde os participantes do encontro podiam conversar com Gael Guibert, um dos filhos de Aimé Guibert, o aguerrido vinhateiro que mostrou ao mundo o potencial da região do Languedoc-Roussilon para fazer grandes vinhos. Com 32 anos, Gael deixou no começo de 2006 o cargo de consultor de informática numa multinacional em Paris, voltou ao sul da França e se integrou ao negócio de vinho da família. Conhecido pela alta qualidade de seus tintos e brancos, seu pai, Aimé, ficou ainda famoso recentemente graças à repercussão do documentário Mondovino, de cineasta-sommelier Jonathan Nossiter. No filme, o velho vinhateiro conta a sua luta (bem-sucedida) contra a investida dos Mondavi, poderosos produtores da Califórnia, no sul da França. “Lá em casa, quando o papai começa a falar muito e dar ordens, temos que lembrá-lo que ele não é uma estrela de cinema”, disse, em tom de brincadeira, Gael.
*Esta matéria foi originalmente publicada no edição de junho de 2006 do jornal Bon Vivant
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