A outra terra da Sangiovese?
A Romagna tenta se firmar como produtora de bons tintos com a uva que deu fama à Toscana
Marcos Pivetta, de Faenza*
04/07/2011

Il Colombarone, da Tenula La Viola, um dos tintos à base de Sangiovese que tentam ganhar mercado internacional
Com 4, 4 milhões de habitantes, a Emilia-Romagna é uma rica região administrativa do norte da Itália, definição mais ou menos equivalente ao conceito de estado no Brasil. É uma criação recente, precisamente de 1970, quando foram unidas politicamente duas sub-regiões distintas, a Emilia, a oeste, e a Romagna, a leste. Sua capital é Bologna, cidade com tradição humanista, de esquerda, terra onde surgiu o mais famoso molho usado para escoltar massas e também a universidade mais antiga do mundo. Bologna costuma ser também citada como um marco informal das fronteiras que separam a Emilia da Romagna.
Ninguém parece saber com exatidão onde termina uma e começa outra. A afirmação é um exagero, mas há um ditado popular que brinca com essa questão e mostra as diferenças culturais entre os moradores das duas áreas. Se, ao entrar numa casa, um visitante recebe um copo de água, ele está na Emilia. Se, prossegue o adágio, ganha uma taça de vinho, está na Romagna. Para o romanholo, a chegada de alguém é motivo de festa – e é nesses momentos, não no dia a dia, que ele costuma abrir uma garrafa de tinto. A Romagna gosta de projetar para si mesma uma imagem acolhedora, associada ao vinho. Mas essa percepção não é muito forte fora dos limites locais.
Os maravilhosos carros superesportivos de luxo (Ferrari e Lamborghini), o aceto balsâmico (de Modena), o queijo parmesão (o original) e o presunto (o de Parma, claro) – todos esses produtos de prestígio internacional são, a rigor, típicos da Emilia, não da Romagna. Até o popular Lambrusco, um frisante sem prestígio produzido em quantidades industriais, vem da porção ocidental da região. O que teria então a Romagna a oferecer ao mundo em matéria de vinho?
A resposta, óbvia, é tintos à base da uva Sangiovese e brancos ancorados na casta Albana. Se essas são as armas da região, a batalha não será fácil. A Sangiovese, uva de reconhecidas qualidades, é a essência do Chianti Classico, do Brunello di Montalcino e do Vino Nobile di Montepulciano, três dos mais renomados tipos de vinhos da vizinha Toscana, com a qual a Emilia-Romagna mantém, ao sul, uma grande fronteira geográfica, pontuado pelos montes Apeninos, e uma pequena crise de identidade enológica. Pouca gente deve pensar no Sangiovese di Romagna, o tinto mais ambicioso da região, quando ouve a palavra Sangiovese. A Albana … Bem, levante a mão quem conhece a Albana, uva típica da Romagna que gera vinhos secos, meio-doces, doces e até espumantes. A batalha então está perdida? Não necessariamente.
Um giro rápido pela Romagna – realizado no final de fevereiro a convite de uma associação de oito produtores locais de vinho, a Convito di Romagna, e do Consorzio Vini di Romagna, que reúne quase 100 produtores e 4.900 plantadores de uva – mostra que os melhores Sangiovese locais não têm do que se envergonhar, embora a qualidade média da produção local nem sempre seja impressionante. No caso dos Albana, os exemplares mais interessantes parecem ser os elaborados com uvas passificadas, no estilo vinho doce de sobremesa. Os brancos secos feitos com essa casta não têm muita complexidade, mas podem ser frescos, agradáveis e fáceis de beber.

Maria Cristina Geminiano, enóloga e membro da família que detém a Fattoria Zerbina
Um produtor realmente bom, como a Fattoria Zerbina, situada em Marzeno di Faenza, nos arredores da cidade de Faenza e a 30 quilômetros do mar Adriático, prova que os vinhos da Romagna podem ter classe internacional. Maria Cristina Geminiano, enóloga e membro da família que detém uma bela propriedade de 80 hectares desde 1966, fala sobre as características da Sangiovese romanhola. “Aqui temos um solo mais argiloso do que na Toscana”, diz Maria Cristina, cujos vinhos (alguns) são trazidos ao Brasil pela importadora Vinci. “Nosso (vinho) Sangiovese é mais frutado, claro, talvez com um pouco menos de estrutura. Mas pode alcançar o mesmo nível de qualidade.” A degustação de uma prova de barril do Pietramora Sangiovese di Romagna Riserva Doc da safra 2010, o tinto top da vinícola, atesta a seriedade do vinho. Além da uva que lhe dá o nome, o Pietramora tem, no máximo, 3% da casta Ancellotta e envelhece em barris de carvalho francês de 225 litros.
Mais surprendente ainda é o Scaccomato 2006, o melhor vinho de sobremesa da Zerbina. Em português, o nome do vinho quer dizer xeque-mate, o que explica o tabuleiro de zadrez no rótulo. Feito com uvas Albana colhidas tardiamente e atacadas pela chamada podridão nobre — como no caso dos Sauternes franceses, a ação do fungo Botrytis cinerea concentra o açúcar da fruta e gera um aroma particular —, o Scaccomato é um vinho que impressiona. “A Albana é uma uva ácida e, em alguns anos, pode ser atacada pela podridão nobre”, diz Maria Cristina. A Zerbina, que produz anualmente cerca de 220 mil garrafas de vinho, faz um segundo rótulo de sobremesa, o Arrocco, cujas uvas foram apenas parcialmente afetadas pelo fungo.
Na história da Albana, variedade aparentemente nativa da Romagna, há um lance típico do jogo de interesses que, às vezes, está associado à criação de áreas legalmente demarcadas para a produção a vinhos na Itália, as chamadas DOCs (Denominazione di Origine Controllata) e as DOCGs (Denominazione di Origine Controllata e Garantita). Em teoria, vinhos DOCGs deveriam ser melhores do que os DOCs. Isso porque, numa zona DOCG, o potencial qualitativo das uvas provenientes desse lugar, devido a uma série de fatores naturais e a restrições legais, deveria ser maior do que numa DOC. Para surpresa de muitos, foi criada em 1987 a primeira DOCG para vinhos brancos na Itália: o status da antiga e modesta DOC Albana di Romagna, que atualmente compreende uma zona de produção com 853 hectares de uva plantados entre Bologna e o balneário de Rimini, foi elevado a essa nova categoria.
Mas, deixando a Albana de lado, a Romagna gosta de se definir como a terra da uva Sangiovese. A outra terra da Sangiovese, bem entendido, já que essa uva está indiscutivelmente associada à Toscana. Houve (e há) quem até mesmo diga que essa variedade surgiu na Romagna, e não na Toscana, embora o tema seja passível de intensos debates. De concreto, sabe-se que as fronteiras entre as duas regiões foram móveis no passado e partes da Romagna de hoje formavam a Toscana de ontem. “A Sangiovese nasceu nas montanhas, entre a divisa da Romagna e da Toscana”, afirma Giovanna Gelmi Drei Donà, proprietária da Drei Donà Tenuta La Palazza, uma bela propriedade com 27 hectares de vinhas cultivadas nas colinas entre as cidades de Forli, Castrocaro e Predappio, na boca do vale entre os rios Rabbi e Montone. “Estamos na mesma altitude da Toscana, mas temos os ventos do mar. Começamos a colheita uns 15 dias antes do que lá.” Num dia de sol, sem névoa, é possível ver o Adriático das terras da Drei Donà.
Embora alguns questionem onde exatamente surgiu a Sangiovese, os romanholos admitem que seus vizinhos da Toscana sempre foram a grande referência na elaboração de vinhos com essa casta. “Há uns 30 anos, não era possível encontrar um bom Sangiovese di Romagna”, afirma Giovanna, que produz 150 mil garrafas por ano, três quartos delas para exportação. O Pruno, um Sangiovese Riserva envelhecido por 18 meses no carvalho, é o vinho número um da casa. Seu irmão menor é o Notturno, também 100% Sangiovese, que é vendido dentro da categoria IGT(Indicazione Geografica Tipica). Mais aberta às castas francesas, a Drei Donà elabora um tinto 100% Cabernet Sauvignon com passagem por madeira, o Magnificat, que é vendido na Itália mais ou menos pelo mesmo preço do Pruno, cerca de 20 euros. É uma boa compra, mas melhor ainda é o branco Il Tornese, um blend composto geralmente de 85% Chardonnay e 15% de Riesling. Com acidez, mineralidade e levíssimo toque tostado, a safra 2009 desse vinho é uma delícia e uma pechincha (entre 7 e 10 euros nos mercados locais). A Romagna deveria fazer mais vinhos assim.

Giovanna Gelmi Drei Donà, proprietária da Drei Donà Tenuta La Palazza, bela propriedade com 27 hectares de vinhas cultivadas nas colinas entre as cidades de Forli, Castrocaro e Predappio
Nas últimas duas décadas, houve um processo de descobrimento das potencialidades da Romagna vitícola entre as novas gerações, os filhos dos fazendeiros. “As pessoas estão se dando conta de que aqui dá para fazer bom vinho”, afirma Stefano Gabellini, dono da Tenula La Viola, em Bertinoro, nos arredores de Forli. “Quando era jovem, não sabia que a Sangiovese sozinha podia ser tão interessante.’ Embora a propriedade esteja nas mãos da família desde 1962, a produção de vinhos começou apenas em 1998. Dos 5 hectares cultivados, saem anualmente 35 mil garrafas, a maioria à base de Sangiovese, como o Pethra Honorii e o Colombarone, embora haja também um exemplar, o Particella 25, cuja espinha dorsal seja uma mistura de Merlot e Cabernet Sauvignon.
Com o objetivo de divulgar a produção local de vinhos, a Convito di Romagna e o Consorzio Vini di Romagna promoveram nos dias 20 e 21 de fevereiro deste ano a sexta edição de um evento concebido para a imprensa italiana e internacional, compradores de vinho e também o público em geral: o Vini ad Arte. O evento, que ocorreu no Museu Internacional de Cerâmica de Faenza, reuniu 35 produtores em 2011. Além de provar exemplares de Sangiovese e Albana nos mais variados estilos, o visitante do Vini ad Arte pode experimentar vinhos de variedades menos conhecidas, como as tintas Uva Longanesi e Burson ou a branca Pagadebit. Agendada estrategicamente em datas próximas a eventos similares da Toscana, que já contam com um público cativo de jornalistas e compradores vindos do exterior, a celebração anual do Sangiovese romanholo quer se firmar como mais uma parada obrigatória para os amantes e profissionais do vinho.
O ano de 2001 reserva provavelmente uma mudança na maneira de denominar as mais importantes DOCs da Romagna. Em vez de valorizar o nome da uva, a nova nomenclatura deverá colocar em relevo a região de produção, a Romagna, e seus terroirs. Dessa forma, a DOC Sangiovese di Romagna passará a se chamar Romagna Sangiovese. O mesmo ocorrerá com a DOCG Albana di Romagna, que virará Romagna Albana, e outras denominações de origem. “As mudanças deverão entrar em vigor antes de setembro deste ano”, afirma Giordano Zinzani, presidente do Consorzio Vini di Romagna. “Queremos fugir da padronização de gosto dos vinhos do Novo Mundo.” Outra alteração prevista é a possibilidade de os novos Romagna Sangiovese incluirem ainda em seus rótulos o nome de doze subáreas, que produziriam vinhos com características peculiares. É mais uma forma de tentar valorizar os possíveis terroirs romanholos.
Como se vê, forjar uma identidade própria no mundo cada vez mais globalizado do vinho não é um desafio apenas para os chamados países do Novo Mundo. Áreas menos renomadas da França ou da Itália, cuja produção vinícola foi historicamente ofuscada por tintos e brancos oriundos de regiões vizinhas mais famosas, como é o caso da discreta Emilia-Romagna em relação à famosa Toscana, enfrentam o mesmo problema no século XXI, quando conquistar consumidores fora das fronteiras nacionais é quase uma questão de sobrevivência. “Temos de falar um pouco mais dos nossos vinhos, e não apenas da comida”, diz Gian Alfonso Roda, presidente da Enoteca Regionale Emilia Romagna, associação criada em 1970 para promover a produção local e que hoje conta com 243 membros. Roda está em negociações com um empresário de São Paulo para abrir neste ano uma loja especializada em vinhos da Emilia-Romagna. Se o negócio sair, mais brasileiros poderão provar os tintos da outra terra da Sangiovese.
* Esta reportagem foi publicada na edição 141 da revista Bon Vivant.
O jornalista Marcos Pivetta viajou para Faenza a convite de uma associação de oito produtores locais de vinho, a Convito di Romagna
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