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Do saxofone para o terroir

Consultor de solos, o chileno Pedro Parra se firma como um dos nomes em ascensão no mundo do vinho

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

21/10/2011
© Divulgação

Parra numa calicata: buracos no solo para estudar o terroir

O chileno Pedro Parra foi para a França em 1997 perseguir seu sonho: ser músico de jazz, saxofonista profissional. Não deu certo. Mas hoje, aos 41 anos, Parra, que significa videira em espanhol, não pode dizer que a viagem foi em vão. Na Europa, aprendeu a beber, virou especialista em solos e, sete anos mais tarde, obteve seu PhD em terroir. Na lista elaborada neste ano pela revista inglesa Decanter das 50 pessoas mais influentes do mundo do vinho, o chileno, que agora é consultor de terroir de quase uma quinzena de vinícolas em seu país, na Argentina, na Itália e na Califórnia, ocupa a 49ª posição. No ranking 2011 da publicação, há apenas outros dois sul-americanos, o produtor argentino Nicolás Catena, que dispensa apresentações, e Eduardo Guilisasti, gerente geral da gigante chilena Concha y Toro.

Oriundo de Concepción, no sul do Chile, onde mora, Parra veio ao Brasil pela primeira vez no fim de junho para falar de seu trabalho em geral e também do Projeto Terroir que toca para a Viña Altos Las Hormigas, de Mendoza, um de seu clientes, cujos vinhos são trazido ao Brasil pela importadora Mistral [Depois de feita esta entrevista, Parra já esteve novamente no Brasil] . Talvez ele preferisse discorrer sobre jazz e discos de vinil, duas de suas paixões, ou da pequena linha própria de vinhos que elabora no Chile. Mas, como não podia deixar de ser, a conversa com o BV foi em torno do tema que o projetou internacionalmente: terroir. Um conceito por vezes fluido, de difícil apreensão, que pode ser sintetizado grosseiramente como a assinatura estilística, a tipicidade, que um lugar, por meio de seu clima, de seus produtores e de seus terrenos, pode conferir a certos vinhos.

Por que resolveu estudar terroir?

Foi uma sorte, coincidência. Estudei engenharia florestal, mas não gostava disso. Mas era amigo, de jogar futebol, de um enólogo, Marcelo Retamal, hoje chefe de uma vinícola conhecida, a De Martino. Estávamos juntos na universidade, no sul do Chile, em Concepción, que é o centro, o motor, do país. Tudo se cria em Concepción, a música, mas o dinheiro, eles roubam em Santiago. Quando terminei a universidade, quis viajar, sair do Chile e ser saxofonista. Mas meus pais não deixaram. Meus pais, meus tios, meus primos, todos eram advogados. Ganhei uma bolsa de mestrado da embaixada francesa para ir a Montpellier, onde também está a escola de jazz de Michel Petrucciani (1962-1999), que foi um grande pianista.

Não foi a Montpellier, que é um conhecido centro de pesquisa em viticultura e enologia, por causa do vinho então?

Não. Mas fui para a Escola de Agronomia de Montpellier, que é muito boa. Meu mestrado era sobre agricultura de precisão, embora eu não soubesse nada disso. Fui também à escola de jazz, mas houve um problema. Vi um garoto de doze ou treze anos que tocava mil vezes melhor do que eu, que tinha quase 30 anos. Depois de um mês na escola de jazz, vi que não tinha opção. No Chile eu era bom (saxofonista). Em Montpellier, era um zero. Tinha que fazer escalas (musicais) e não conseguia. Saí do jazz e fui fazer meu mestrado. Ao terminá-lo, tinha de fazer uma tese, um trabalho final. Fui ao Instituto Nacional Agronômico de Paris para trabalhar sobre o meu tema e lá havia um moça, ao meu lado, que fazia um mestrado em solos e ajudava outra moça que fazia o doutorado em terroir. A moça que fazia o doutorado era Emmanuelle Vaudour, que fez um livro muito bom sobre terroir, financiado pela região das Côtes du Rhône. Isso foi no ano de 1998. Nesse momento, começam a me convidar para degustações de Syrah e Grenache.

Até esse momento você não bebia vinho regularmente?

Não bebia nada, nem vinho, nem conhaque, nem whisky – e eu já tinha 29 anos. Gostei muito do tema. Quando voltei ao Chile, comecei a trabalhar com o assunto mesmo sem saber muito de terroir. Isso foi em 1999. Mas ainda não era o momento. Ninguém se interessava ou falava de terroir.

O que diziam no Chile?

Não conheciam o assunto ou não queriam conhecer. Não sei ao certo. Depois disso, em 2001, já casado e com um filho, voltei para essa mesma escola em Paris fazer o doutorado. Eu tinha apoio de uma empresa, a Concha y Toro (maior produtora de vinhos do Chile), para fazer um trabalho com seu vinho Don Melchor. Mas tive muitos problemas nesse primeiro ano. A Concha y Toro não me enviava informações sobre o vinho, como a madurez da uva, dados geológicos ou climáticos. Não entendia por que não me chegava nada. Hoje vejo que esse período foi muito bom para mim. Tive um ano em que pude estudar muito e entrar no tema terroir. No segundo ano, chegou muito informação e comecei o trabalho de campo, mais prático. Assim entrei no tema. Foi uma sorte.

Como foi o início da vida de consultor de terroir?

Quando voltei ai Chile, em janeiro de 2005, não tinha trabalho. Na verdade, tinha um trabalho, que era ser consultor de uma vinícola, a De Martino.

Do seu amigo, Marcelo Retamal.

O único que me contratou foi o meu amigo. Ela tinha me contratado em 2003 para começar um projeto que se chamava Single Vineyard para De Martino, que hoje dá bons vinhos. Mas eu e Marcelo tínhamos uns 34 e 35 anos. Éramos como insetos, um nada na indústria de vinho do Chile. Foi uma época muito violenta devido à personalidade do Marcelo e da minha. Para sobreviver, fomos muito agressivos. Mas a tática funcionou.

Como era essa agressividade?

Por exemplo, Marcelo conduzia uma degustação de seu vinhos para enólogos jovens e um desses enólogos lhe dizia que o vinho estava bom. Marcelo respondia que, sim, o vinho era bom e vinha de um terroir assim ou assado. Se um enólogo dizia que não entendia o conceito, Marcelo dizia que esse enólogo não entendia nada. Éramos assim. Viajávamos juntos e empurrávamos o conceito de terroir. Nessa época, se juntou a nós um outro amigo, que era mais jovem, Rodrigo Soto, da vinícola Matetic, que fica no vale de San Antonio. Um quarto amigo se juntou depois, Felipe Toso, da Ventisquero. Depois um quinto, Felipe Müller, que hoje é enólogo da Viña Tabalí. Chegamos a ser doze. Entre janeiro de 2005 e janeiro de 2007, éramos doze que todo dia falávamos o mesmo, que o terroir era isso, que o terroir era aquilo. Desde então, o número de pessoas que falam de terroir no Chile se multiplicou. Isso foi muito bom pois gerou uma ruptura mental muito boa no Chile. Acho que hoje a enologia chilena pode ser dividida em antes e depois do Marcelo. Hoje todos querem ser o Marcelo. Mas o Marcelo está sempre um ou dois anos à frente dos outros. Marcelo me ajudou muito no trabalho com o terroir e eu também o ajudei demais. Esse esquema funcionou bem até 2007, quando cada um foi cuidar mais do seu próprio espaço. Em 2007 ou 2008, conheço o Alberto Antonini (enólogo e um dos donos da Viña Altos Las Hormigas) e começo o trabalho na Argentina e depois na Toscana.

Qual é o seu conceito de terroir?

Para mim, o terroir é um pedaço espacial em três dimensões, abaixo, acima e ao lado, que gera uma tipicidade. A escola europeia e eu damos a maior importância à “genética” do terroir, que é essencialmente a geologia.

A geologia é mais importante que o clima?

Não. Em primeiro lugar vem o clima, que dá um pouco da tipicidade aromática. Falo do que acredito. O clima dá o aroma. O solo, o tanino. Posso ter um solo calcário extraordinário num clima tropical no qual dificilmente consigo fazer um Pinot Noir. Creio, portanto, que o clima manda na geologia. Posso ter um clima muito bom e um solo muito ruim e, ainda assim, consigo fazer um Pinot Noir. Não é o melhor Pinot Noir, mas eu o faço. Se eu fosse começar um projeto, como me aconteceu no Chile, primeiro buscaria o clima. Há muitas formas de entender o clima. Tenho a minha forma pessoal de entendê-lo e outras pessoas têm outras formas. Por exemplo, como se pode definir o que é um clima frio. A resposta pode ser muito ampla. Amigos meus dizem que o Vale de Leyda (Chile) é frio. Sim, é frio, mas lá se fazem vinhos com 15,5 graus de álcool. Portanto, a relação entre frio e álcool, entre frio e açúcar, não é bem assim. A relação é entre frio e acidez. Há muitas opções dentro da família dos climas frios. Qual é o frio de que você gosta? Vale do Limarí, Casablanca, Leyda (todos no Chile) são áreas frias. O Vale do Uco (Mendoza) também. Que tipo de frio eu quero?

O que faz, por exemplo, dois lugares frios serem diferentes? A geologia?

Acho que dois fatores contam. O primeiro é a geologia e o segundo é o homem. Sem o homem não há vinho. Portanto, sem o homem não há terroir. De certa forma, o homem é o centro do terroir. Pode tornar o terroir muito ruim ou muito bom. Um exemplo. Até quinze anos atrás, Clos de Tart (um vinhedo de Pinot Noir com o status legal de grand cru, o mais alto na Borgonha), era um terroir muito ruim. Hoje é extraordinário. O que aconteceu? Mudaram o homem que cuidava da terra. O anterior não entendia o terroir. O de hoje entende.

Você acredita que o terroir é uma construção humana?

Não. É uma interpretação humana. Mas é preciso entendê-lo.

Mas quando alguém move terra e coloca pedras num lugar não está construindo um terroir?

Sim, nesse caso sim. Isso geralmente se faz pouco, com exceção da França, onde se faz muito isso por uma questão de dinheiro. No Chile e na Argentina, onde tenho experiência, não se constrói um terroir. Não conheço exemplos muito bons de construção de terroir. Há alguns em St- Émilion (uma sub-região de Bordeaux). Mas construir um terroir é caro e toma tempo. Esse não é meu objetivo. É mais fácil procurá-lo (na natureza).

Como se diferencia um vinho que expressa um terroir de outro que não expressa?

Para alguém que está no dia a dia do vinho, é fácil diferenciar. Para um consumidor, é muito difícil. Isso porque é preciso conhecer a tipicidade que um terroir entrega sem maquiagem, o que é difícil. Por maquiagem, entendo todas as operações humanas que intervêm num vinho, que modifica sua tipicidade, como as práticas enológicas, o uso de barricas de carvalho. O que faz uma barrica é apagar a origem do vinho e entregar outra coisa. A (levedura) Brettanomyces faz com que todos os vinhos fiquem iguais. O terroir é uma expressão da qual você pode gostar ou não. No Chile, há um terroir famoso, que pertence à Casa Lapostolle. É famoso porque há 50 anos dá uma tipicidade horrível e um vinho horrível. Como terroir é fantástico. Não mudou nada em 50 anos. Mas o resultado é horrível. Dá um Cabernet Sauvignon “intomável”, com uma tipicidade que não muda. Um terroir pode ter cheiro de pé ou de violetas, mas é sempre um terroir.

Mas boa parte dos grandes vinhos passa muito tempo em barricas.

Sim, mas não todos. Philippe Pacalet, (produtor) da Borgonha, utiliza apenas barricas com três anos de uso. E faz grandes vinhos.

Mas os grandes de Bordeaux usam muita madeira.

Mas Bordeaux é Bordeaux. A pergunta que se deve fazer é: há terroir em Bordeaux? Diria que depende. Se perguntar a Claude Bourguignon (especialista francês em solos), ele dirá que não. Eu digo que sim. Mas o problema em Bordeaux é que eles misturam tudo, fazem uma maquiagem e lançam um produto. Se você quer um conceito mais puro de terroir, deve ir às Côtes Du Rhône, a alguns produtores da Borgonha, da Alsácia. Não tem que ir a Bordeaux.

Muitas pessoas pensam que um tipo de solo dá um tipo de aroma específico num vinho. As coisas são assim mesmo?

Não. Cinquenta e oito por cento dos solos vitícolas franceses são calcários. Um por cento dele é extraordinário. Os outros 57% são mais ou menos. Portanto, a palavra calcário sozinha não quer dizer muita coisa. Mas calcário com um complemento e mais outro complemento significa, sim, alguma coisa. É preciso especificar que tipo de calcário se tem, como ele se fraturou, qual é quantidade de calcário ativo tem calcário, que solo há acima dele. Uma coisa é dizer que se tem um solo calcário do Kimmeridgiano, com fraturas horizontais, com pedras presentes na argila e 22% de calcário ativo e uma inclinação de tantos porcento. Essa é a descrição de um terroir.

Como é o seu trabalho? É feito mais em campo?

Trabalho por etapas. O mais importante para mim é entender a “genética” do lugar. Essa tarefa pode demorar um dia ou um ano. Depende de muitas coisas. Em termos técnicos, precisa saber qual é a litologia (estudo da natureza das rochas) de uma região. No Priorato, é xisto. Na Borgona, calcário. Em St-Émilion, calcário. No Douro, xisto. Em Hermitage, granito. Esse é o primeiro passo. Conhecendo a genética, posso ter uma ideia do que é ou pode ser o vinho. Calcário em ladeira dá elegância, profundidade, ataque. Xisto dá ataque, elegância, profundidade. Granito dá vinho gordo. Argila dá vinho suave e gordo. Se sou o dono de vinícola e gosto dos vinhos gordos, como os do Vale do Napa (Califórnia), não posso comprar uma ladeira de calcário. Não posso ir nessa direção. Teria que comprar uma ladeira de granito por razões técnicas. A tipicidade em boca também está associada a uma tipicidade de odor porque madura mais tarde. E se madura mais tarde, dá uma família de odores, tende mais a fruta negra do que a fruta ácida. Se sou, por exemplo, o enólogo de Screaming Eagle (famoso produtor de Napa), busco um vinho com fruta negra, potência, álcool, gordo. Busco, nesse caso, uma família de terroir. Quando entendo que família de terroir há numa região, posso dar o passo seguinte.

Qual é o próximo passo?

Quando comecei a trabalhar com Alberto na Altos Las Hormigas, precisei entender quantas famílias de terroir havia em Mendoza, se um, dois ou dez. Se eu perguntava para um mendocino, me diziam que era tudo igual. Mas hoje posso dizer com facilidade que há 50 ou até 100 terroirs em Mendonça. Só em Agrelo deve ter uns dez. Se formos mais longe e colocar mais distritos, aparecem uns quinze. O mendocino diz que a única diferença é a altitude de cada vinhedo. Mas não é assim. O que é verdade é que 100% da formação dos terroirs de Mendoza vem dos Andes. É a mesmo história geológica em geral. Mas dentro desses sistema muitas coisas ocorreram. O que sei fazer é dividir essa história geológica em duas: ou é geologia ou não é geologia. Esse segundo caso eu chamo de geomorfologia. Se é geomorfologia, significa que os processos ocorreram ontem, porque vêm das glaciações. Se é geologia, significa que é velho, é por fraturamento, por formas. Se é geomorfologia, é plano, com formas suaves. Isso muda tudo, é como distinguir uma loira de uma morena. No Chile, há muita geologia. Em Mendonza, não é geologia, é só geomorfologia. Depois vem o segundo passo. Como são os vinhos de geologia e os de geomorfologia. Se você entrar numa grande loja de vinhos, verá que uns 85% dos grandes vinhos vêm de geologia. Apenas uns 15% vêm de geormofologia. Se estou em geologia, trabalho de uma forma. Se estou em geomorfologia, trabalho de outra. Preciso ver antes de tudo onde estou. Depois que entendi isso, tudo fica mais fácil.

Como trabalha na Altos Las Hormigas?

Nessa propriedade, há uma mudança de escala. Deixei a região de Mendoza e passei a trabalhar num vinhedo. Portanto, saí do macro e entrei no micro. Nessa escala, a questão é: se tenho dois vinhedos dentro de uma mesma unidade, preciso concluir se eles são iguais ou se são duas coisas distintas. Se são diferentes, onde eles se separam. Quando já existe essa separação, é preciso então fazer observações detalhadas do solo e do subsolo, analisar a história do vinhedo e do vinho. É como um médico que faz uma tomografia. é preciso ver o que caracteriza a zona A e a zona B. Então é possível fazer um avaliação se o vinhedo é bom, mais ou menos ou não tem solução. Se acho que um terreno é muito bom, mas o Alberto me diz que o vinho é apenas bom, isso é um sinal de que há algo errado. Ou eu errei no meu julgamento ou se passa algo que faz com que a planta nesse vinhedo não atinja todo o seu potencial. Por que o vinho é apenas bom e não muito bom? Me dizem que falta profundidade de boca. Isso já me ajuda. Três ou quatro coisas podem provocar a falta de profundidade, como uma planta ruim (nesse caso, tem de cortar e plantar outra), pode ser que a planta foi mal trabalhada por dez anos e se estressou. Ou pode ser falta de ar para oxigenar o solo. Pode ser falta de argila com areia no solo. Pode ser que a argila se foi, se lavou e se lixiviou. Em alguns casos, há solução; em outros, não. É uma família de problemas. Tem que começar a descartar o que pode ser ou não.

Trocar de cepa pode ser uma solução?

Em alguns casos, sim. Esse é um problema clássico. Mas cortar e trocar a cepa é uma solução muito cara. Há também indicadores que precisam ser analisados. Por exemplo, onde há Cabernets com êxito num mundo?. Faça o ranking. Aparece Bordeaux, depois Napa. O que há em comum entre esses terroirs? Em geral há sempre pontos em comum. Daí você pode ver que o Cabernet cresce geralmente numa determinada família de condições. Um Pinot Noir cresce em outra família. Uma Grenache em outra. Há variedades que são mais difíceis e outras mais fáceis.

Como trabalha com uma variedade pouco conhecida?

É difícil. Não se sabe o que fazer, pois não há história. Para avaliar um vinho de um terroir totalmente desconhecido demora uns quinze anos. Tem que plantar, avaliar, esperar a planta atingir uma madurez. Muita gente planta, avalia o vinho no terceiro ano e acha que está ruim. Minha experiência mostra que muitas plantas que começam mal podem terminar bem. As que começam bem podem terminar mal.

Como convence um produtor a investir no conceito de terroir?

Minha experiência é por meio da educação. A melhor forma é ensinar o dono (da vinícola) a tomar vinho. Acontece muito no Chile o seguinte: você é contratado, começa o projeto e só então descobre que o dono não sabe o que está buscando. A reposta muitas vezes é: quero o melhor vinho. A realidade da Europa e do Novo Mundo em termos de cultura do vinho e degustação é muito distinta. Na Europa as pessoas estão familiarizadas com o vinho de uma forma que não estamos na Argentina, no Chile e na África do Sul. Muitas vezes acontece de o dono do dinheiro ter participado um dia de um jantar onde tomou um Petrus, um La Tâche, um vinho de três mil dólares, e depois volta para o seu país e diz que quer fazer o mesmo vinho. Mas a pessoa não valoriza o vinho por que gosta, mas sim por que é caro. Às vezes, quando tenho tempo, viajo com o produtor à França, fazemos degustações. Eles precisam descobrir os vinhos por eles mesmos. Se não parece que tudo é uma bobagem. Quando ele sente um aroma ou algo sem que alguém tenha de dizê-lo, ele se sente um pouco como o enólogo. Aí começa um jogo. Então o dono começa a comprar vinho e a se interessar. Tenho um cliente meu, famoso no Chile e com muito dinheiro, que me ligou um dia de Nova Iorque e me disse: “Quero comprar Pinot Noir. O que compro?” Aí eu disse compre esse, compre aquele. Se o produtor dá esse primeiro passo, é porque ele já comprou a sua ideia de terroir. Essa é a parte mais difícil. Quando a pessoa entende isso, passa a ver o seu próprio projeto de outra forma. Ele já não quer fazer simplesmente o melhor vinho. Ele passa a ter um foco. Isso se chama educação. É preciso gastar tempo e energia, as pessoas querem aprender.

Vinhos de terroir têm de ser sempre caros?

Por dez ou doze dólares pode se comprar vinhos de terroir muito bons no Chile. Na Borgonha se pode comprar vinhos de terroir não muito caros também. Os vinhos até podem não ser tão bons, mas são de terroir. Vinho de terroir não é a mesma coisa que vinho bom. Tenho um amigo em Bordeaux, em Margaux (sub-região), que é dono do Château de Graviers. Ele é biodinâmico. O vinho é uma Ferrari. Vale 15 euros. Ninguém o conhece. Mas o vinho é expressão do plateau de Margaux numa garrafa.

Em busca dos terroirs de Mendoza

Italiano da região do Chianti, na Toscana, o enólogo e consultor Alberto Antonini, um dos sócios da vinícola Altos Las Hormigas, de Mendoza, resolveu contrariar uma máxima do futebol — e decidiu mexer num time que está ganhando. “A hora é agora enquanto as coisas vão bem”, diz Antonini. Ao lado de outras vinícolas de ponta da Argentina, a Altos Las Hormigas cresceu e se tornou conhecida internacionalmente na década passada graças aos seus bons vinhos ancorados na uva Malbec, casta de origem francesa que se tornou a cara da vitivinicultura do país vizinho e caiu no gosto do consumidor moderno. Mas hoje todo mundo produz Malbecs e é iminente o risco de os vinhos varietais, baseados nessa cepa, se tornarem uma commodity, um produto de base com preço e qualidade quase uniforme. Diante dessa inquietação, Antonini deu o pontapé inicial em 2008 no que chama de Projeto Terroir e contratou os serviços do consultor chileno Pedro Parra. “Já tinha conversado com outros especialistas em solos, mas havia sempre um problema”, conta Antonini, que acompanhou Parra em sua visita a São Paulo. “O sujeito entendia de geologia, mas não de vinho. Pedro entende das duas coisas.”

Com a experiência de 15 anos elaborando vinho em Mendoza, tendo adotado a agricultura orgânica nos últimos tempos, Antonini está fazendo um trabalho de macro e de microzoneamento de seus vinhedos na região com a ajuda de Parra, que escava grandes buracos no terreno, as calicatas, para estudar as características de cada pedaço de chão. Os solos de Mendoza são aluviais e foram formados pela ação da água de degelo dos Andes, que aportou diferentes elementos e camadas a distintas partes da região. O levantamento dos terroirs mendocinos ainda está no início. Mas os primeiros resultados já levaram a Altos Las Hormigas, que produz anualmente 700 mil garrafas de vinho, a lançar novos rótulos, provenientes de vinhedos mais específicos. O número de Malbec produzidos soltou de dois para quatro. A vinícola manteve seu rótulo de base, o Malbec Classico (hoje na safra 2010), e o antigo reserva foi renomeado para Terroir Valle do Uco. Foram acrescentados à linha dois vinhos tops, o Reserva Valle do Uco 2008 e o Vista Flores Single Vineyard 2006 (feito com fruta oriunda apenas dessa localidade). Fora a linha de Malbec, a vinícola produz ainda um tinto básico à base de Bonarda (o Colonia Las Liebres). Antonini espera que o estudo dos terroirs de Mendoza leve à criação de um sistema de denominações de origem na região argentina.

* Esta é uma versão bem maior de uma reportagem publicada na edição de número 142 da revista Bon Vivant

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