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Do vinho do pescador ao Beaujolais

Alguns destaques nada convencionais do Decanter Wine Show 2008, evento que passou por quatro capitais

Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*

20/10/2008

O sul-africano Piet Dreyer: ex-pescador qu virou vinhateiro (Foto: Marcos Pivetta)

O sul-africano Piet Dreyer é um vinhateiro que tem os pés no chão. Literalmente. Dos longos anos em que foi um bem-sucedido pescador profissional, guarda o hábito de andar descalço. Corpulento e bonachão, o dono da vinícola Raka era uma figura nada discreta entre os 50 produtores de 9 países que participaram do Decanter Wine Show 2008, evento que a importadora Decanter promoveu em quatro capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba) no início de agosto. Afinal, quantas vezes você já foi servido por um produtor de vinho que tem aversão a sapatos? Não se deve, no entanto, deixar enganar pelo ar folclórico de Dreyer. Seus tintos de corte bordalês, como o Quinary 2004 e o Figurehead 2004 (ambos a R$ 120,80), elaborados com as uvas típicas de Bordeaux (Cabernet Sauvignon, Merlot e Cabernet Franc), às vezes com a adição de um pouco de Pinotage, uva típica da África do Sul, são realmente bons. O seu varietal de Pinotage 2005 (R$ 97,80), aliás, é um bom exemplo do que se pode fazer com essa casta, uma uva tinta que ainda não convenceu o mercado internacional. “Nossos vinhos têm um estilo intermediário, entre o que se faz no Velho e no Novo Mundo”, diz o ex-capitão do mar.

Cristophe Coquard e sua mulher: um novo e bom négociant do Beaujolais (Foto: Marcos Pivetta)

Uma das novidades desta edição do evento foi a presença de um novo négociant do Beaujolais, a Maison Coquard, criada há cerca de 3 anos pelo jovem Cristophe Coquard e hoje responsável por engarrafar 300 mil garrafas por ano. Négociant é o termo francês que se dá ao empresário que compra vinho (ou uvas) de produtores, faz blends e engarrafa o produto final com sua marca. Descrito às vezes como a parte (bem) menos nobre da Borgonha, às vezes como uma região vinícola separada das demais zonas produtoras francesas, o Beaujolais é a terra da Gamay, uva tinta que dá vinhos frutados e ligeiros, quase sempre despretensiosos. O modestíssimo e quase sempre padronizado Beaujolais Nouveau, que nos anos 1990 chegou a alcançar fama planetária, tornou-se, com o passar do tempo, um fardo extra para toda a região. O Nouveau eclipsou ainda mais os vinhos mais interessantes da região, em geral elaborados com uvas de uma das dez comunas (ou crus) do Beaujolais. Nesse contexto, e seguindo uma trilha aberta pelo gigante Georges Duboef e seus conhecidos Beaujolais de rótulos floral (30 milhões de garrafas por ano), Coquard criou uma linha confiável e moderna de tintos leves e agradáveis, muitos deles oriundos dos crus. No rótulo de cada vinho, aparece uma representação distinta de um tipo de casa, um conceito que cria uma agradável unidade visual para os produtos da marca. “É importante ter rótulos bonitos, mas também é um risco”, comenta Cristophe, que esteve em São Paulo ao lado da mulher. “Se o vinho for ruim, o cliente vai sempre lembrar do rótulo e não vai mais comprá-lo.” Ainda bem que o Morgon 2006 (R$ 65,50) e o mesmo o Beaujolais Villages 2006 (R$ 51,80) não fazem feio e mostram que nem está perdido para o Beaujolais.

A Decanter tem um catálogo de produtores relativamente enxuto, mas nesta segunda edição do evento (a primeira ocorreu em 2006) foi possível provar vinhos interessantes de várias partes do mundo, como da Argentina (Luigi Bosca, Callia, Colomé), Uruguai (Bouza), Chile (De Martino) e Itália (os Barolos de Pio Cesare ou os vinhos da Puglia da Pervini, elaborados com a casta Primitivo). Isso sem falar nos nomes ascendentes da Espanha e, claro, nos franceses. Na ala gaulesa, o Blanc de Noirs Brut Grand Cru da Barnaut (R$ 184,00) é uma prova do quanto pode ser delicioso um champanhe elaborado apenas com a tinta Pinot Noir. Com boa presença entre os produtores que participaram do evento, Portugal foi, como vem se tornando regra em certas feiras, uma parada obrigatória. E frequentemente recompensadora. Em quase todas as latitudes da terrinha, de norte a sul, há o que se conhecer: os tintos do Douro de Domingos Alves de Sousa, os vinhos verdes de Anselmo Mendes, o projeto Altas Quintas no Alentejo.

Luis Lourenço, da Quinta dos Roques/Quinta das Maias: rótulos instigantes com castas menos conhecidas, como a branca Encruzado e a tinta Jaen (Foto: Marcos Pivetta)

Do Dão, uma tradicional região no centro-norte de Portugal que nem sempre é lembrada, vale destacar os bons rótulos elaborados na Quinta das Maias e na Quinta dos Roques, propriedades sob o comando do simpático Luis Lourenço (ouça aqui áudio com o produtor). Além de varietais e blends baseados na Touriga Nacional, a grande uva portuguesa para muitos, Lourenço faz rótulos instigantes com castas menos conhecidas, como a branca Encruzado e a tinta Jaen (chamada de Mencía na Espanha). “O Encruzado é uma casta que tem um bom equilíbrio entre álcool e acidez e pode fermentar em barricas de carvalho”, afirma Lourenço. Seu tinto mais simples, o redondo e frutado Quinta do Correio 2005 (R$ 28,70) – um blend de Jaen, Touriga Nacional, Alfrocheiro Preto e Tinta Roriz elaborado na Quinta dos Roques – conquista o paladar e o bolso do consumidor. É um lembrete de que não é preciso gastar muito para se sentar à mesa com um bom vinho português.

*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de setembro de 2008 do jornal Bon Vivant

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