Dez anos da safra da virada
A colheita de 1999 mostrou que o Brasil também podia elaborar vinhos de qualidade e colocou a bebida nacional na pauta dos consumidores e da mídia
Marcos Pivetta/www.jornaldovinho.com.br*
19/04/2009
Há exatos dez anos, os viticultores da Serra Gaúcha tinham uma safra histórica. Choveu menos do que o usual no período crítico de maturação das parreiras, entre dezembro e março, e a vindima de 1999 foi realmente boa, sobretudo para as uvas finas de amadurecimento precoce (Chardonnay, Gewurztraminer e Pinot Noir) e tardio (Cabernet Sauvignon e Moscato Branco). Para as variedades de maturação intermediária, como Merlot e Riesling Itálico, colhidas entre a segunda quinzena de janeiro e meados de fevereiro, o tempo não se manteve tão quente e ensolarado, e o resultado foi menos exuberante, embora não tenha sido ruim. Conforme resumiu num comunicado técnico o pesquisador Francisco Mandelli, da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves (RS), “de um modo geral, o fenômeno La Niña, que causou prejuízos a outras culturas no Rio Grande do Sul, favoreceu a qualidade e a sanidade da uva da safra de 1999″. Em todo o estado, foram colhidas quase 59 mil toneladas de uvas viníferas, cerca de 20% a mais do que no ano anterior.
Mas não foi apenas devido a fatores meteorológicos favoráveis que essa colheita pode ser apontada hoje como um divisor de águas, um marco, na história do vinho brasileiro. Afinal, do ponto de vista estritamente climatológico, a vindima de 1991 foi até superior à de 1999. Só que no final da década passada o cenário interno reunia uma série de condições mais animadoras do que oito anos antes: surgia ou começava a se firmar no mercado uma nova geração de produtores nacionais comprometida com a busca da qualidade, dotados de modernas instalações para elaborar vinhos e sobretudo dispostos a investir num melhor manejo dos vinhedos; a (amalucada) abertura das importações, promovida pelo governo Fernando Collor de Mello no início dos anos 1990, fez o consumidor se interessar por vinhos em geral, inclusive o nacional, que teve de melhorar em razão da concorrência estrangeira; os meios de comunicação e formadores de opinião começaram a valorizar os fermentados de uva em suas reportagens e discussões.
Ou seja, havia um novo contexto cultural e econômico que deu à boa safra de 1999 uma visibilidade provavelmente sem precedentes, tirando da sombra o movimento até então silencioso de renovação e modernização que a vitivinicultura nacional vinha ensaiando já há alguns anos. “Desde os anos 1970, temos relatos de algumas boas safras na região, mas que não se tornaram tão conhecidas porque não havia toda essa badalação”, comenta o pesquisador Celito Guerra, também da Embrapa Uva e Vinho. Para o enólogo Luís Henrique Zanini, da Vallontano, vinícola do Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, que elaborou os primeiros vinhos da empresa apenas na safra seguinte (no ano 2000), os tintos da colheita 1999 foram os primeiros rótulos nacionais a realmente vencer a desconfiança das pessoas com os produtos elaborados no Brasil. “Além disso, nessa época os próprios enólogos, que no início dos anos 1990 deram muita ênfase a aspectos técnicos da profissão e na aquisição de tecnologia para as vinícolas, passaram a trabalhar com mais cuidado a uva nos vinhedos”, afirma Zanini.
A história recente de algumas vinícolas bem-sucedidas da Serra Gaúcha ilustra algumas das mudanças ocorridas no setor desde a famosa safra de 1999.
Pizzato
A pequena e familiar Pizzato, com sede no Vale dos Vinhedos, começou sua história justamente na safra 1999. Nesse ano, a empresa elaborou 15.500 garrafas de um único produto, o Merlot Reserva, um dos melhores rótulos daquela colheita e ainda hoje em boa forma (veja texto sobre degustação de vinhos nacionais de 1999). Hoje, dez anos depois, a Pizzato, que tem vinhedos em Bento Gonçalves e no município de Dois Lageados, ostenta uma linha de doze rótulos, somando oito tintos, um branco, um rosé e dois espumantes. Seu enólogo, o jovem e talentoso Ivo Pizzato, morreu prematuramente num acidente de carro em 2007, mas a família — os irmãos Flavio, também enólogo, Flavia e Jane e o pai deles, Plínio — continua firme à frente da empresa.
Angheben
Outra boa vinícola que nasceu em 1999. Nesse ano, Idalêncio Francisco Angheben e seu filho Eduardo, ambos enólogos, elaboram apenas 13 mil garrafas de um vinho de corte (blend) feito com uvas Cabernet Sauvignon, Merlot e Tannat. As uvas eram compradas de terceiros e originárias da Serra Gaúcha e de Pinheiro Machado, na Serra do Sudeste. As instalações da vinícola ainda não estavam prontas e o vinho foi elaborado numa empresa de amigos. Eduardo lembra daqueles tempos. “Havia então um clima de muita esperança na região. Muitos vinhedos foram criados por entusiasmo”, diz ele. “Hoje há esperança, mas sabe-se que é preciso muita transpiração para tocar uma vinícola. O consumidor é quem determina o que vamos produzir. Temos de ter produtos de qualidade e a preço justo.” Desde 2004, a Angheben, embora mantenha a vinícola no Vale dos Vinhedos, produz vinhos apenas com uvas de seus próprios parreirais, situados no município de Encruzilhada do Sul, na Serra do Sudeste. Sua linha de produtos cresceu. Conta atualmente com 5 tintos, um branco e um espumante. A produção anual da casa gira em torno de 40 mil ou 50 mil garrafas. Eduardo acredita ter equacionado um dos maiores problemas dos pequenos produtores nacionais — a logística e o marketing de seu produtos — depois de ter fechado um acordo com uma importadora, a Vinci, para distribuir os seus vinhos no país.
Dal Pizzol
Fundada em meados dos anos 1970, a vinícola Monte Lemos, que faz os vinhos Dal Pizzol, mudou bastante a sua forma de atuação nos últimos anos. “Ter qualidade hoje não é mais um diferencial, é uma obrigação”, diz Dirceu Scottá, enólogo da Dal Pizzol, que fica no distrito de Faria Lemos, em Bento Gonçalves. Ele acredita que a safra de 1999 marca também uma mudança de filosofia de trabalho nas melhores empresas da região. “O clima foi responsável pela boa safra de 1991”, comenta. “Mas a de 1999 é fruto do clima e do melhor trabalho nos vinhedos”. Desde então, o maior cuidado com as uvas no parreiral, onde nasce um bom vinho, tem permitido minimizar o impacto negativo das safras ruins e maximizar o das boas (como ocorreu nos anos de 2002, 2004 e 2005). Funcionário da Dal Pizzol desde 1992, Scottá diz que a empresa teve de abandonar antigas práticas, tradições familiares da região, em prol da modernização. Hoje 96% dos vinhedos que fornecem uvas para a vinícola adotam a espaldeira, uma forma de condução da vinha que costuma propriciar uvas de melhor qualidade do que a tradicional latada. A empresa não tem vinhedos próprios e compra uvas de dez produtores-parceiros para elaborar suas 300 mil garrafas anuais. “No passado, quase toda a nossa uva vinha da região de Bento Gonçalves”, conta. Hoje, de acordo com a cepa, a Dal Pizzol tem um fornecedor de uma região específica do Rio Grande do Sul. O Sauvignon Blanc, por exemplo, vem de Santana do Livramento; a Touriga Nacional e o Pinot Noir são de Encruzilhada do Sul, o Merlot sai de Faria Lemos e de Pinheiro Machado.
Salton
Talvez com algum exagero, a história da Salton, fundada em 1910, pode ser dividida em antes e depois da safra 1999. Até então, a empresa estava voltada basicamente para produtos extremamente populares, como o Conhaque Presidente, que representava mais de 50% de seu faturamento, e vinhos e espumantes muito simples e baratos, elaborados com uvas de mesa ou até mesmo viníferas. “Em 1999, fizemos um bom Cabernet Sauvignon e um Gewurztraminer na linha Classic e começamos a pensar em mudar o perfil da empresa, em investir em vinhos superiores”, conta Daniel Salton, diretor comercial da vinícola. Desde então, a gigante Salton tem diminuído o peso dos rótulos mais modestos e centrado fogo nos produtos com maior valor agregado. Criou uma boa linha de varietais, a Volpi, um degrau acima dos Classic. Lançou dois tintos que se tornaram os tops da casa, o Talento (em 2002) e Merlot Desejo (em 2004). E se tornou a maior produtora de espumantes do país, desbancado a Chandon, líder histórica do setor. Em 2008, elaborou 4,7 milhões de garrafas de espumantes, cerca de 40% da produção brasileira. Só a área de espumantes representa atualmente quase 30% do faturamento total da empresa, que foi de R$ 180 milhões no ano passado. “Hoje o Conhaque Presidente responde por no máximo 40% do nosso faturamento”, diz Daniel Salton. A nota triste nessa história de sucesso foi a morte em 10 de fevereiro deste ano de Ângelo Salton Neto, então presidente da Salton e grande condutor dessa guinada na companhia.
Miolo
É provavelmente o caso mais espetacular de crescimento no setor vitivinícola nacional. A empresa surgiu em 1989 vendendo vinho a granel para outros estabelecimentos. Engarrafou seu primeiro rótulo cinco anos depois, um Merlot da safra 1990, que na partida inicial contabilizava 8 mil garrafas. Em 1999, lançou o vinho ícone da casa, a primeira safra do Lote 43. Também nesse ano, Adriano Miolo, o enólogo da empresa, elaborou a safra de estreia do Gran Lovara, uma parceria com a vinícola Lovara. Hoje, milhões de garrafas de Miolo Seleção depois, a empresa é um assombro. Faz vinhos em várias partes do Rio Grande do Sul: na Serra Gaúcha, inclusive no Vale dos Vinhedos, uma área delimitada que ostenta desde 2002 o status de Indicação de Procedência (IP); na Campanha Gaúcha, perto do Uruguai; em Campos de Cima da Serra (parceria com o empresário Raul Anselmo Randon); e no Vale do São Francisco. A Miolo mantém ainda parcerias com empresas no Chile (Viasul), Argentina (Los Nevados) e na Espanha (Osborne), de onde importa uma série de rótulos. E, desde 2003, contratou para dar assessoria na elaboração de seus vinhos de maior prestígio, o francês Michel Rolland, o mais famoso e polêmico enólogo-consultor da atualidade. Hoje a Miolo produz ou importa mais de 70 rótulos. No seu plano de negócios, há as seguintes metas para 2012: faturar R$ 150 milhões, produzir 12 milhões de litros de vinho por ano e exportar 30% da produção.
*Esta matéria foi originalmente publicada na edição de abril de 2009 da revista Bon Vivant
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